Editorial feito por comunicadoras, musicistas e advogada aborda a violência de gênero e a responsabilidade de canais de música diante de denúncias.
Nos últimos dias, surgiram pela internet diversas denúncias envolvendo artistas, integrantes de bandas, produtores musicais e casas de shows. Motivadas por essa onda e reconhecendo a importância da reflexão, debate e questionamento sobre esse tema, resolvemos abrir um debate amplo sobre essas questões, envolvendo jornalistas, advogadas, musicistas e produtoras culturais. Dessa forma, podemos falar com mais responsabilidade sobre o papel do jornalismo musical diante dessas questões.
Quando o Movimento de Libertação das Mulheres (WLM) adotou o slogan “o pessoal é político”, uma curiosidade foi despertada em muitos: ‘qual é meu papel na sociedade?’. Mesmo que você não seja um participante ativo de qualquer movimento político, ainda é parte de uma dinâmica social formada por diálogos diversos. Alguns deles, porém, um tanto ocultos das grandes massas.
O compromisso com o diálogo, a busca por evidências e a transparência são elementos comuns nos manuais jornalísticos. Entretanto, quando tratamos alguns temas específicos, esses critérios tendem a perder força. Quando falamos em violência contra a mulher e preconceito de gênero, ainda há quem prefira permanecer “de fora”, principalmente quando envolve pessoas com reconhecimento midiático ou pessoas próximas. Mas o avanço desses debates depende da nossa reflexão e do nosso questionamento sobre os lugares que ocupamos nessas dinâmicas sociais.
Qual o nosso papel?
Na internet, observamos uma onda de movimentos simultâneos que tomam dimensões impensáveis. Hashtags do Twitter ocupam as ruas, causas virtuais se inserem no cotidiano; entretanto, divergências em debates podem extrapolar a esfera digital. E é aí que os veículos de comunicação precisam entrar em cena. Porém, nas imensas ondas de repercussão digital, muitas coisas se confundem; entre elas, o papel dos veículos e leitores na conversa sobre violências. Ou como mencionamos anteriormente, ‘qual o nosso papel na sociedade’.
É responsabilidade do jornalismo averiguar toda e qualquer informação, incluindo denúncias, assim como cabe à sensibilidade da(o) jornalista, entender que enquanto não houver comprovação da denúncia, não se deve publicar matérias sobre o artista/produtor/casa de show que está sob investigação. Se comprovado que a denúncia é verdadeira, é parte do compromisso social do veículo de comunicação musical avaliar se vale a pena reviver as dores das vítimas em busca de uma matéria para enaltecer um mero trabalho musical.
Acreditamos que a vida humana vem antes de qualquer arte. Quando o veículo continua enaltecendo um artista, casa ou produtor, mesmo sabendo da confirmação de denúncias de violência de gênero, contribui para um ambiente seguro para agressores, onde nada acontece, consequências são ignoradas, e o agressor sempre sai ileso, enquanto a vítima leva essas dores para toda a vida. Não podemos mais proporcionar essa segurança para o agressor e ignorar as sequelas causadas nas vítimas.
Violência de gênero em dados
Não é um discurso polarizado, militante ou ‘politicamente correto’, mas trata-se conhecer e entender os fatos. Dados que comprovam como diversas formas e tipos de violência de gênero ocorrem de maneira combinada, todos os dias, em todos os lugares. A tal ‘ideologia de gênero’ não existe.
Falar como 536 mulheres foram vítimas de agressão física a cada hora em 2018 não é uma tentativa de chocar ou ‘lacrar na web’: É afirmar uma realidade. Um dado que concerne a todos os cidadãos e precisa ser de conhecimento geral. É elucidar os fatos e entender que essas mulheres não são meramente estatística, são sobreviventes de um sistema pautado numa lógica cruel de supremacia de um gênero sobre outro, e que piora se fizermos um recorte de raça e classe. Não existe trabalho musical que valha mais do que essas vidas.
Mais do que nunca, agora faz-se necessário agir de maneira coerente e responsável enquanto leitores e interlocutores. Não podemos fechar os olhos ao sabermos que o Brasil registrou um caso de violência doméstica a cada 4 minutos; que 76,4% dos agressores são conhecidos da vítima; que mulheres negras têm três vezes mais chances de serem vítimas de feminicídio. É preciso entender como o machismo estrutura nossa sociedade para podermos construir um caminho mais seguro, igual e diverso.
Por isso, há um traço vital nas relações de comunicação: a responsabilidade. Estabelecer uma relação de confiança entre leitores e interlocutores, permitindo-nos falar do que é importante sem discriminação: optar pela visibilidade, representatividade e diversidade, ao invés de virar as costas para histórias reais que fazem parte de nossas vidas.
O que faremos a respeito?
Portanto, viemos afirmar a vocês, leitoras e leitores, uma colaboração em prol da transparência e do combate à violência no meio digital. Nós, enquanto veículos de comunicação cultural, assumimos o compromisso com o respeito e dignidade humana por meio de um trabalho conjunto de conscientização sobre violência de gênero. Para isso, uniremos forças para tornar esse ambiente digital mais aberto, seguro e verdadeiro, reafirmando nossa responsabilidade e contando com a colaboração de vocês, leitoras e leitores, para que possamos construir um ambiente digital saudável, diversificado e acolhedor.
Para responder algumas dúvidas frequentes sobre violência, contamos com o auxílio da advogada e ativista dos direitos humanos, Amanda Gondim*, da cidade de Uberlândia, MG:
Quais são as formas de violência de gênero?
As diversas formas de violência são encontradas na Lei Maria da Penha, no crime de pornô de vingança e importunação sexual e também no Estatuto da criança e adolescente, quando for direcionado a menores de idade. O peso dessas violências começam, geralmente, em ofensas morais, psicológicas, perseguições, ataques virtuais coordenados, sedução direcionada a menores, acarretando inúmeros problemas às mulheres.
A internet é uma expansão de nossa realidade, logo, existe uma responsabilização penal e cível com relação a essas condutas criminosas. Atualmente pode ocorrer até mesmo responsabilização por lesão à saúde da mulher que sofre violência psicológica. Quem espalha conteúdo de violência, como pornografia infantil, e armazena esse ou outros conteúdos de violência contra a mulher também é responsabilizado.
Onde posso recorrer em caso de violência?
Existem canais de denúncia apropriados para serem informados sobre tais situações ou as suspeitas a respeito. Por exemplo, o Ministério Público do estado quando for direcionado à pessoa, o Ministério Público Federal quando for crime como racismo, lgbtfobia e conteúdo (armazenamento e disseminação) pedófilo. Outros meios são as delegacias virtuais dos Estados ou da Polícia Civil. Também há o disque 100 para denúncias de violação dos direitos humanos. O safernet.org também recebe denúncias de racismo, pedofilia e lgbtfobia.
Ao se deparar com alguma situação de violência, você pode denunciar nesses canais; no caso de presenciar a violência, pode ligar para a polícia local. Existe um preconceito com relação às denúncias das mulheres em situação de violência, um estigma que precisa ser desnaturalizado.
A palavra da mulher em situação de violência, juridicamente, tem um valor mais alto mesmo em detrimento de muitas provas elementais, porque grande parte dessa violência não deixa marcas físicas — a princípio. Não pratique a revitimização dessa mulher, colocando-a numa situação humilhante de reviver a situação pela qual passou. Quem tem a capacidade de apurar sobre os fatos apontados são as autoridades policiais e o judiciário. O acolhimento é parte importante no auxílio a mulheres que se encontram nessa situação.
Cuidados ao se deparar com situação de violência
Não há um padrão social para comportamentos opressores sobre mulheres, esse tipo de violência acontece em todas as camadas da sociedade sob diversas formas. Caso se depare com situações como essas na internet, jamais exponha a vítima, não reproduza esse tipo de violência e invasão.
Consulte os canais de denúncia que realmente podem apurar tais fatos e dar direcionamento eficaz a mulher. Caso saiba de casas de acolhimento ou equipes de psicólogos que possam auxiliar, coloque-se à disposição, mas nunca de maneira invasiva ou impositiva. Todas as deliberações sobre a vida dessa mulher precisam partir de sua própria autonomia.
O que fazer em caso de violência sexual?
Os crimes envolvendo mulheres são diversos assim como suas resoluções. Em caso de estupro, indica-se que primeiramente a mulher seja acolhida por pessoas de sua confiança e se direcione para exames médicos em hospitais que façam a coleta de material e tome as precauções necessárias, como os medicamentos para evitar problemas de saúde. Além disso, também relate o ocorrido para ter um laudo médico de primeiro atendimento que seja detalhado.
Ao se dirigir a delegacias, peça pelo encaminhamento ao exame de corpo de delito e, se preciso, um pedido de medida protetiva caso conheça o autor do fato. Procure assessoria jurídica com profissionais de sua confiança; caso não tenha condições financeiras de arcar com estes custos, procure uma defensoria pública estadual próxima ou o Ministério Público.
Para ser atendida no hospital, não há a necessidade de boletim de ocorrência anterior. Sobre relatos de violência na internet, há campanhas a respeito para incentivar que as mulheres rompam o silêncio. Porém existem cuidados a serem tomados para resguardá-las de um revés judicial por parte dos autores de violência. Ao expor um relato, atente-se aos fatos que aconteceram, não exponha dados pessoais nem características que identifiquem o agressor, tenha o controle de sua narrativa. Pode usar fotos e imagens, assim como boletins de ocorrência, desde que não mostre dados pessoais.
Dicas para planejamento de fuga em caso de violência durante a quarentena
Caso esteja vivendo em um relacionamento violento nesse período de quarentena, algumas formas de se desvencilhar de seu agressor podem ser: a estruturação de um plano estratégico, contar com pessoas de sua confiança, separar seus documentos pessoais e uma quantia de dinheiro que lhe permita se deslocar a um local seguro; escolher uma palavra ou gesto que transmita a seus contatos que você está em perigo. Em caso de emergência e violência física, evite banheiros e cozinhas e se residir em prédios evite janelas e sacadas. Caso tenha medida protetiva, ande sempre com ela; se residir em condomínio, avise o síndico e porteiros para impedirem a entrada do agressor. Afaste-se do local em direção a comércios próximos ou espaços onde você consiga acionar autoridade policial e pessoas de sua confiança.
Em alguns estados como São Paulo é possível realizar um boletim de ocorrência online em situação de violência. Atente-se para monitoramento e acessos de outros dispositivos em suas contas pessoais e e-mail. É comum que o agressor monitore seu comportamento e interações nas redes sociais ou com amigos e familiares. Há uma campanha do sinal vermelho que permite que a mulher vá até farmácias aderentes e mostre um x vermelho na palma da mão; o atendente então coletará suas informações pessoais e acionará a polícia sobre a situação de violência.
O que fazer em caso de exposição da vida íntima na internet?
Caso ocorra exposições de sua vida íntima nas redes sem o seu consentimento, você pode acionar empresas que atuam com segurança de dados e fazer um PAC WEB, que é uma Prova de Autenticidade de Conteúdo WEB, a maneira mais segura de coletar dados para provas processuais de crimes na internet. Consulte sempre advogadas(os) de sua confiança e que entendam desse assunto.
*Amanda Gondim é advogada em direitos de mulheres, pessoas com deficiência e LGBTI+, e ativista pelos direitos humanos.
Compuseram este editorial: Amanda Magnino, Ananda Zambi, Bia Viana, Leticia Lopes, Letty.
Assinam este editorial: Blog N’ Roll, Hits Perdidos, NadaPop, Crush em Hi-Fi.