“Será que um dia eu vou me arrepender? Até hoje não pintou nenhum arrependimento” (Vigna)
O eterno boqueiro Raimundo Vigna, nascido em 1949, em Santos, não tem dúvidas: rock and roll mesmo era feito na Boca de Santos. “Hoje já rola a calça rasgada, mas naquela época (1964-1971) rasgávamos as próprias calças. A nossa vida era a real que o Rolling Stones vendia, mas não era. Eles moravam em castelos, nós não”.
“A nossa turma era mais roqueira do que os gringos que tocávamos as músicas”.
Não é novidade para o santista que a cidade tem o maior, o melhor e o primeiro de quase tudo em todos os assuntos. Desde o primeiro time brasileiro campeão do mundo até o maior porto da América Latina. Mas Vigna não tem dúvida que foi a partir do Porto de Santos que o rock chegou ao Brasil.
“As guitarras e os álbuns vinham com os gringos nos navios. Jimi Hendrix, Rolling Stones, Kinks e o som de outras bandas chegaram ao Brasil pelo porto”.
O intercâmbio com os marinheiros era tão grande que surgiram várias amizades na Boca. “Eles sabiam o que gostávamos e traziam para nós, inclusive pratos de bateria e guitarras Fender. Em Santos não tinha instrumento para comprar. E foi dali que foi sustentada muita banda de São Paulo, como os Jordans (considerada uma das primeiras bandas de rock do Brasil). Eles iam buscar os instrumentos na Boca”.
O baterista enxerga também uma diferença grande no que era destaque na Capital e o rock tocado na Boca. “Em São Paulo tava rolando coisas mais levezinhas, como a Jovem Guarda e o Renato e seus Blue Caps. Lá (na Boca) era mais porrada. Respirávamos o rock and roll e fazíamos a coisa rolar”.
Muito antes do americano GG Allin (1956-1993) chocar o público com suas performances caóticas nos shows, Vigna conta que uma figura roubava a cena nas jams da Boca. “O Satanás entrava na boate, tirava a roupa, mijava em cima dos outros e tocava muito. Um excelente guitarrista. Tinha uma turma que ia nos shows só para ver o que ia acontecer de louco no dia”.
No entanto, após se tornar uma das grandes figuras da Boca, Satanás teve um fim trágico. Foi assassinado e teve o corpo jogado dentro de uma lata de lixo. Vigna, não recorda o ano, mas acredita que ele tenha sido morto entre os anos 1970 e 1980, na própria área da Boca.
Dedicação
“Naquela época para ficar na Boca, a pessoa não poderia estudar, nem trabalhar em nenhum lugar. Eu respirava o rock and roll o dia inteiro. De dia ficava com a vitrolinha tirando as músicas e depois tocava das 21h às 5 horas. Os músicos moravam lá, porque as prostituas acolhiam muito bem os cabeludos daquela época”.
As anfitriãs acolheram Vigna também. “Eu acabei até morando ali. Meu pai tinha um bar na Rua Senador Feijo e fui ficando aos pouco por lá. Tínhamos uns mulherões, rock and roll e liberdade”. Após os shows, com o nascer do sol, Vigna e os amigos corriam para um dos barzinhos da redondeza para tomar café, fechando mais uma jornada.
O prazer de tocar Vigna não perdeu até hoje. Mas amor igual ao que viveu, entre 1964 e 1971, na Boca, ficou no túnel do tempo. “A minha vida de músico é de um profissional que fala em marketing, em vender disco e fazer sucesso. Naquela época era uma filosofia de vida, vivíamos uma verdade”.