Memórias de um b(r)oqueiro 4

Union Beat, em 1970, uma das principais bandas da época

A série Memórias de um b(r)oqueiro está de volta. Diferentemente dos três primeiros textos, quando o baterista Raimundo Vigna falou sobre a sua experiência nas boca santista, o personagem da vez atende por Bardhal. Francisco Barbosa dos Santos é baixista e iniciou sua trajetória nos inferninhos de Santos em dezembro de 1969. Cinco anos depois do nosso primeiro personagem, Vigna.

Quando desceu do Volkswagen verde do Mário Serra, crooner da banda Paralelo 23, o baixista Bardhal não poderia imaginar que uma surpresa chocante o aguardava em sua primeira incursão às famosas Bocas de Santos: um corpo encontrava-se no chão de paralelepípedos, semi-encoberto por um jornal, o mesmo onde o falecido seria, provavelmente, parte do noticiário policial.

Foi um verdadeiro choque e o músico foi tomado por um horror que ainda não havia experimentado.

O baixista passou a sua infância no bairro do Marapé, mais precisamente a umas duas quadras do famigerado “pé do morro” onde proliferavam os mais temidos bandidos da época. Havia presenciado cenas dignas dos melhores filmes de faroeste tupiniquim, mas assassinato mesmo ainda não tinha visto.

E estava lá “o corpo estendido no chão”, mais precisamente meio corpo calçada acima e pernas abertas para o leito carroçável. Nada mais que um punhado de putas e espectadores rodeavam o corpo, que ganhava um efeito sinistro causado pela luz vermelha piscante do camburão preto e branco da Polícia Civil.

Mas o rock and roll convidava para uma exploração mais profunda e isso requeria um pouco de coragem, pois o ano de 1969 consolidava a entrada da era Beatles no País. Invariavelmente, os navios traziam, além de mercadorias, os compactos e elepês dos grupos britânicos Beatles, Rolling Stones, Led Zeppelin, The Who entre outros.

Assim, as boates das Bocas de Santos não eram só um polo de diversão sexual para os marinheiros, que formavam uma verdadeira Babel naquele trecho da Cidade. Foi lá que os primeiros grupos de músicos iniciavam a revolucionária histórica do gênero no Brasil.

As noites das Bocas expressavam então, a profunda transição de estilo musical que antes se concentrava em um comportamento mais polido de músicos engravatados, que costumavam se apresentar também no lendário e igualmente especial Parque Balneário Hotel, na esquina da Avenida Ana Costa com a Praia.

Nessa época, o máximo da travessura musical se resumia ao rockabilly, que disputava, com fraqueza, espaço entre mambos, boleros e o samba de breque. Mas como saídos de uma nave espacial alienígena, os “conjuntos” de rock começavam a invadir os bares e aos poucos, roubando a cena.

Seo Abel abre as portas do paraíso

Os cabeludos causavam espanto àquela altura dos acontecimentos, mas os donos dos night clubs tiveram faro suficiente para sacar a preferência dos marinheiros pela agitação daquele som inovador. Pelo que se consta, um dos primeiros incentivadores da nova onda foi o “Seo Abel”, do Oslo Bar, que cedeu espaço aos Lovers, formado por Vigna, Velha, Carlinhos e Satanás.

Assim estava traçado o caminho do rock, sob a regência de um bando de jovens tidos na época como “transviados” cuja arte atraia marinheiros sedentos de diversão e sexo e as putas, sabiamente treinadas para torrar os dólares de seus clientes e ganhar comissões tentadoras.

Depois de curtir a noite embalada por suor, tabaco, bebidas alcoólicas, drogas e o som das guitarras ensurdecedoras, os marinheiros levavam suas presas para os hotéis pulguentos das cercanias e lá, terminavam o serviço. Muitos “gringos”, como eram conhecidos os marinheiros, sob efeito de álcool e drogas, eram roubados ao final dos programas, mas registraram-se muitos casos onde se apaixonaram verdadeiramente pelas prostitutas, casaram-se e formaram família, no melhor estilo ”lavou tá novo”.

Os bares, ou night clubs, eram batizados segundo uma estratégia de marketing que parecia funcionar e, ao mesmo tempo, dava um toque cosmopolita à Boca Santista: Bergen, Suomi, Oslo, Zanzibar, Porto Rico, American Bar, Hamburg Bar, Akropolis, Casablanca, entre outros, com seus luminosos em neon a piscar eternamente na mente de quem por ali passou.

Naquela noite, nem mesmo aquele corpo estendido faria Bardhal recuar. Ele foi acompanhado pelos amigos Mário Serra (crooner), Acácio (percussão) e Flávio Ligadinho (bateria) de bar em bar para escutar o som de que tanto ouvia falar.

Bardhal foi arrebatado, literalmente, quando entrou no Hamburg Bar e viu aquele ambiente totalmente estranho. A luz negra causava um efeito fantasmagórico nos corpos que se moviam ao som ensurdecedor das guitarras elétricas e os vocais carbonados com maestria, ainda que num inglês irreconhecível.

Ficou parado na entrada, estupefato, narcotizado por cenas que jamais imaginara testemunhar. Era a magia das Bocas.

Naquela época o músico havia sido convidado para ser o baixista do grupo Paralelo 23, “título” que conferia trafegar pelo mundos das bandas (conjuntos), mesmo que sob o preconceitos dos grupos maiores e de mais prestígio, como Pop Six, Teenagers e pelo excepcional Black Cats ( Blow Up).

Não se pode explicar porque aquela onda chegou com tanta força, mas é inegável o arrebatamento de toda uma geração que se rendeu ao rock. Muitos jovens largaram seus estudos na tentativa se tornarem músicos.

Eles buscavam a fama, dinheiro fácil e prestígio, sob influência dos astros do rock cujas vidas eram amplamente exploradas pela mídia. A maioria se deu mal a julgar pela falta de condições culturais adequadas em nosso País. Alguns alcançaram seus objetivos por mérito, esforço e uma boa dose de sorte.

Na época, a maioria dos rapazes estavam interessados em mergulhar de cabeça no rock e, por conta disto, eram músicos e roadies ao mesmo tempo; carregavam a aparelhagem, montavam, tocavam com fervor, desmontavam, carregavam e descarregavam.

Os equipamentos da época, ainda que escassos, eram robustos e pesadíssimos como os Tremendões e True Reverbs, da Gianinni, para guitarras e os acanhados Phelpas “pirulito” que os músicos usavam para a voz, antes da própria Gianinni lançar os “ musts” A100, A200 e A300. Verdadeiro exercício de força física e de vontade.

Chegavam em casa junto com o Sol, quando não com chuva, mas sem reclamar e satisfeitos por “estrelarem” naquele admirável mundo do novo rock. Bardhal começou a trabalhar muito cedo e, desde o início, percebeu que viver como boêmio, não combinava com a sua personalidade.

E foi assim que se apaixonou pelo rock, pela noite e pelas Bocas, sem no entanto deixar de ser comportado e caretão. Um amor que venceu as décadas e que permanece até hoje.

Aos poucos o baixista se tornou querido pelos músicos e chegou até a receber ofertas de consumo gratuito do “Seo Júlio”, um português de bigodinho estilo Clark Gable, que gostava da sua voz e do seu jeito de animar os gringos.