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Poesia e Rock - Vários

Poesia e Rock #1 – Letras que rolam. Rock escrito escarrado


FLÁVIO VIEGAS AMOREIRA

Foto do post: Ciro Hamen

Sem temor de exagero considero o rock um gênero literário: poesia cantada, na mesma tradição dos aedos gregos e bardos celtas cantando seu tempo, suas sagas e a trajetória humana nesse planetinha desde as primeiras pedras que rolam. A convergência é cristalina lá com a parceria de Bob Dylan e Allen Ginsberg ou a musicalização por Sting dos poemas do mártir católico Robert Shouthwell, sem esquecer as estupidamentes belas composições dos nossos Titãs. Não é mesmo Arnaldo Antunes um dos nossos maiores poetas pós concretos? E um puta romancista na esteira de Rubem Fonseca o querido Tony Belotto?

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Não posso ir esquecendo que o próprio pseudônimo desse patriarca de Blowin in the wind vir duma fertilíssima admiração pelo maldito poeta Dylan Thomas: beberrão, mal comportado, irascível galês que vem inspirando o rock mundial desde sua arquetípica overdose…. de álcool.

Voltando ao caminho rememoro tudo que ouvia enquanto poetizava, escrevia: preciso sempre ter uma trilha sonora ou como dizem os portugueses uma banda sonora feito uma atmosfera auditiva, que me baixe o santo ou atue feito um médium para criar. Adolescente nos anos 70 ainda tinha os ecos de Joan Baez , os primeiros acordes de Elton John, a fluidez de Eric Clapton , o som de Cat Stevens para o cult movie Harold and Maude, o rock erudito de Frank Zappa e o grande impacto do rock conceitual, quase ideológico do Pink Floyd que ainda retine em minhas sinapses psicodélicas e sensorialidades progressivas ao escutar a composição para Zabriskie Point, que tornou-se ela mesma quase um personagem para Antonioni.

O final desse clássico com sua explosão orgíaca é o retrato do que escrevo: a mesma gênese da poesia e do rock, orgasmo preciso, intuição melódica, grito gutural ou espasmo lírico de intuição visceral, seminal, desregramento de todos os sentidos. Rimbaud sem dúvida seria roqueiro em Tânger paraíso lisérgico ou na sua Zanzibar delirante.

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Foi a poesia dos simbolistas Lautréamont e Verlaine que emprestou aos ídolos da guitarra seu glamour trágico: Jim Morrison e meu amado Nick Drake não perdem em nada em genialidade poética para os bebedores de absinto. Morrison, leitor de Nietzsche, foi encontrar em William Blake força para expressar o elo perdido entre as flores do mal baudelarianas e suas epifanias diante dos crepúsculos do Novo México.

Morrison, Nick Drake e Kurt Cobain formaram nesses anos todos de iconoclastia musical a suprema trindade que encontraria no Brasil correspondente na troika purpúrea: Cazuza, Renato Russo e Cássia Eller: todos poetas desviados de rota do caderno pautado para os acordes incandescentes, as baladas em transe e o ritmo desdobrado até o infinito que descrevo.

E aqui teço inumeráveis variações sobre ilimitado tema: o que é rock para um poeta? Recorro ao patriarca do jazz para a dialética do rock. Poesia é como o rock e o jazz. Quando perguntaram a Louis Armstrong o que é o jazz, sua resposta era fulminante: “Se você não sabe o que é o jazz, então não adianta eu tentar explicar”.

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Essa zona de liberdade criativa ampliando deslimites da forma e conteúdo, com delicadeza ou fúria, aproximando significantes múltiplos e sintonias insuspeitadas: esse buquê que perdura mesmo sem presença da flor: o rock exala sem síntese, linguagem musical carregada de significados até o grau máximo de expressão musical.

E quanto se torna mais fácil e rico ouvir , curtir e criar rock numa cidade portuária: essa costa do sul reverbera as docas de Liverpool, os deck de Brighton ou as brumas do Oregon enquanto em algum quarto de fundos alguma formação de guitarristas surge enquanto ouvíamos placidamente Lou Reed na joyceana Blue Mask ou o spleen melancólico de Pink Moon, com Nick Drake, sempre ele, na tímida primavera.

Escrevo de ouvido: o lance dum ensaio crítico ou emotivo é repensar conhecimento além do que consta na Wikipédia: tento vos falar da sinestesia que o instrumento vocal de Tom Waits, seu timbre rascante digno dum bourbon ianque e da potência libertária de Another brick in the Wall, do Floyd: teço enquanto rebubino o quanto é rock a poesia que crio e curto e rock as imagens de Daunbailó, de Jim Jarmuch: é nessa indeterminação de gêneros estilos suportes que reflito nesse patamar em que a única boa droga é o gim tônica, o sexo escasseia e tudo está mais Belle & Sebastian que heavy metal.

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Meu reencontro com o rock se deu como fruidor, tradutor, editor: desde a versão lusitana de The man Who sold the world de Bowie até as resenhas das memórias de Sting que tem sim valor literário intrínseco! Além de documental sobre o belíssimo vocalista do Police e suas pérolas ilustradas.

Em nenhum momento o rock esteve tão imbricado com a literatura quanto na Beat Generation, – nasceram juntos, amalgamados . On the road, de Jack Keroauc, e Howl, de Allan Ginsberg, soam manuscritos da desolação e hedonismo despojado tanto quanto as baladas de Patti Smith: na verdade difícil dissociar os tão batidos e legítimos!

Ideais de contestação, atitude, desbunde, desobediência civil e direitos civis dessas galáxias nebulosas de néon onde orbitavam desde Andy Warhol, Mapplethorpe, Miles Davis e Philip Glass, a parceria do beat Michel Macclure com Janes Joplin , o cinema de Tarkovski e David Lynch e toda poética não escrita que desaguariam nessa era tranZmoderna, onde pontificam ainda o proto-beat Lawrence Ferlinghetti, quase centenário e a melodia desiludida de Ruffus Wainwrigt.

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Tudo isso é ligação ponte foz Poesia- Rock! Mantra, o rock poesia é essa mesma construção existencial passo a passo de colocar nos esboços impressões epidérmicas da alma: levantar se do delírio manso, tomar um trago, ir à janela fumar um cigarrinho e voltar dedilhar notas nervosas no teclado do baixo ou do micro: nano-reverberação do cosmo o rock: tão literário quanto a surrealidade escatológica de Ornete Coleman em Naked Lunch, de William Burroughs, esse vovozinho metálico de Jagger.

Sigo rastreando os poemas mais roqueáveis dos beatniks e a arqueologia musical internética me é preciosa para exegese do quanto o ritmo alimentou minha obra: cresci sob a ditadura brasileira, a guerra fria e depois na sombra do pânico sob a Aids que dizimou meus ídolos com meus inimigos no poder.

A tarefa hermenêutica ao ler Finnegans Wake é similar dissecar letras de Lou Reed: o rock e a poesia vivenciam esse mesmo simultaneísmo sensorial: tudo todo ao mesmo tempo agora para sempre reverbarando.

Agora ligar Because the night, de Patti Smith , – porque citando Ginsberg: “O mundo é uma montanha de merda: se vamos movê-la é preciso que lhe metamos a mão nisso tudo”. Seguimos no improviso já que nada é tão místico quanto o real visível que clama, rock poema….

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[ Flávio Viegas Amoreira]
Poeta, critico literário e jornalista
flavioamoreira@uol.com.br

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1 Comment

1 Comment

  1. Vânia Augusto

    1 de outubro de 2016 at 19:40

    Li o texto do Flávio ouvindo Patti Smith e fez todo o sentido o blog associar literatura e rock. Parabéns!

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