Poesia e Rock #38 – Nirvana e a poesia

FLÁVIO VIEGAS AMOREIRA

Total identificação desse poeta com estilo, trajetória e principalmente construção composicional do Nirvana. Construção composicional para uma banda de rock grunge? Quem disse que a criatividade é feita só para os eruditos? O Nirvana continuou a revolução comportamental de Jim Morrison: atitude com conteúdo, lance midiático com recheio, alma, tônus existencial mesmo sucumbindo num abismo nietzcheniano.

A inteligência do verso-refrão de Smell Like Teen Spirit num outro tom logicamente tem mesma força dum poema melancólico de Verlaine ou os hurros libertários de Allan Ginsberg. Kurt Cobain era leitor voraz de poesia e só desgrenhado na superfície sabia das coisas todas de formação dum sucesso a partir dum hit de qualidade.

Em tempos de Trump a versão de Kurt para The man Who sold the World é das mais lindas homenagens dum gênio a outro carregando sua referencialidade de maior pungência possível: David Bowie não poderia ter maior legado, mesmo que pouco imaginasse, que sobreviveria década a seu epígono.

Imagino Cobain, leitor de Dante & Edgar Allan Poe, nesse seu ano de cinquentenário autografando sua primeira antologia de poemas grunge-eruditos. Quando ouço All apologies posso sentir as pegadas de Walt Whitman nas sendas de Kurt Cobain. Culpa, culpa, culpa minha e toda nossa culpa! E o itinerário para desvencilhar-se de toda introjeção de recalques e opressão sob o sol e todas as vagas marinhas.

Em minhas oficinas literárias vou além e inscrevo inspiração de Kurt Cobain: imperioso é pensar em artes comparadas, – o que o Nirvana tem para acrescentar a quem faz poesia, instalação, dança ou grafite? Passada a vaga de idolatria mercadológica do Nirvana e da necrofilia cultural em torno de Cobain, importa restaurar pela poesia corrosiva insatisfação com sua música manifesto tão desapiedadas de fé quanto a filosofia de Cioran.

Aparente cacofonia In bloom é o desmedido talento para expressar uma atmosfera na supremacia da melodia. Poeta poderia sublevar-me contra essa também aparente desprezo pelo nexo causal na letra, mas a poesia do Nirvana é maior que a soma de todos fatores compondo uma poesia não reduzida dicotomia melodia e letra.

O grande poema antes de clássico precisa revelar-se sujo, ainda esboço, solto nascido ele mesmo alternativo. Adapte essa conjunção para uma garagem em Seattle e perceba que o Nirvana foi inventado por excesso de criatividade: linha de montagem liberta. O segredo do sucesso da banda era a soma do carisma do comandante da nau louca com a mixagem de influências. O Nirvana não inventou nada propriamente, fez melhor tudo que rebobinou. Amo Kurt como amo Rimbaud.