NUNO MINDELIS
Até não tanto tempo atrás, era para mim obrigatório comprar certos discos, por mais que pudesse obtê-los de graça ou quase de graça pelas centenas de meios que conhecemos, de downloads de faixas em MP3 ou full a blogs de conteúdo compartilhado etc, etc.. Eu queria o disco, a bolacha, a capa, o documento. Para ser meu, estar na minha estante, como um livro, para consulta, para registro.
O espectro de artistas que me empolgava a esse ponto foi ficando mais estreito, conforme a força de suas obras ia sendo erodida pelo tempo (implacável) e à medida que iam surgindo outras mídias mais eficientes, como o praticíssimo streaming. Está tudo lá, não há muito sentido em ter que usar um aparelho primitivo como um toca CD quando posso disparar o mesmíssimo áudio (senão melhor) para as minhas caixas a partir de qualquer celular, notebook, TV.
Alguns nomes, contudo, fazem discos que continuam a frequentar a minha estante quando saem, seja em qual formato for. Mesmo que apenas os desembale, sinta quase vorazmente o cheiro da impressão do encarte, leia todos os seus dados técnicos à exaustão (incluindo letrinhas microscópicas da gráfica, copyright etc..) e os ouça no… no Spotify ou plataforma similar. É o caso de Bob Dylan (quando não canta Sinatra). É o caso de mais um ou dois, no máximo. E desses, certamente, Gregg Allman. Não é fácil escrever este texto, seja pela emoção de sua ida recente e prematura, seja pela responsabilidade de falar de um dos mais importantes artistas, compositores, pianistas e vocalistas da história do rock. Se existe um panteão que inclui Beatles, Clapton e pouco mais, Gregg certamente deveria ser colocado nele.
Morreu em maio passado, mas deixou pronta uma pérola de despedida. Ou quase pronta. Há pelo menos duas bases completas sobre as quais não houve tempo de colocar os vocais, Pack It Up, de Freddy King e Hummingbird, de Leon Russel. Que perda!
Gregg estava doente há razoável tempo, em 1999 foi diagnosticado com hepatite C e em 2010 fez um transplante de fígado. A partir dali pensou em criar um ‘espólio artístico” (como Johnny Cash fez) e imaginou um legado consistente de quatro ou cinco álbuns. Começava a despedida. Infelizmente, conseguiram-se apenas dois, dados os altos e baixos da sua saúde ao longo de todo o período: Low Country Blues (2011, especial!) e este, com data de lançamento marcada para de setembro.
As sonoridades de Southern Blood são acima de considerações. Impecáveis. O disco é lindo, tem um tempo especial, parece parar, evoca memórias, cores, como na edição mágica de um filme de Bertolucci. A voz de Gregg, (considerada a 70ª entre as 100 mais de todos os tempos pela revista Rolling Stone) sozinha, já valeria. A carga emocional é grande, tocante. Como disse o produtor Don Was (o mesmo que fez o recente Blue & Lonesome dos Stones) sobre o projeto e as gravações, ‘não estávamos ali para um piquenique”.
A sequência das músicas conta a história do artista e ilustra a despedida. Gregg escolheu a dedo e com um propósito especial o estúdio Fame em Muscle Shoals, onde o seu lendário irmão Duanne tinha gravado e a partir dali sido reconhecido como grande músico, antes mesmo dos Allman Brothers existirem. Queria capturar o espírito daqueles dias, da presença dele, cuja morte disse nunca ter superado.
Originalmente, pensou em compor todos os temas mas, de novo, a saúde impediu-o. Assim das 12 faixas (dez oficiais e dois bônus) só a primeira, My Only True Friend, é dele em parceria com o seu (espetacular) guitarrista de estrada Scott Sharrard. Ouça-a e me conte. As outras são de compositores como Jerry Garcia (Gratefull Dead) Bob Dylan, Willie Dixon, Jackson Browne etc..
No dia 26 de maio, Lehman, seu empresário, mandou-lhe uma meia dúzia das que estavam finalizadas, ele ouviu. Gostou, animado, disse que sabia que a coisa estava encaminhada muito bem, ia ser como ele queria e no dia 27 partiu sem ouvir as outras.
O disco está em pré venda nas principais lojas do ramo. Nunca deixe de ouvi-lo.