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Arkie do BRock #13 – ‘Cê ta pensando que sou Loki, bicho?’ Ou a maestria sinfônica de um disco de rock sem guitarra

Um desafio àqueles que se espelham em Rob Gordon, personagem principal do longa Alta Fidelidade: façam uma lista com os cinco melhores discos de rock and roll de todos os tempos sem o uso de guitarra. A tarefa pode parecer menos árdua hoje, em que a música torna-se cada vez mais mecânica e automatizada pelo admirável novo mundo das batidas por minuto. Entretanto, era uma ideia revolucionária (e alternativa demais) na década de 1970, época que parcela de críticos (incluindo esse escriba) considera apogeu do gênero musical cunhados nos EUA.

Imagine se essa porrada auditiva, no mínimo peculiar no universo roqueiro, partisse de um músico que surgiu do terceiro mundo sob os trópicos? Loucura? Alienação sonora? Ou mais um clássico empoeirado e quase esquecido da discografia nacional? É um pouco disso tudo, podes crê.

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Considerado um dos melhores registros viscerais da fonografia brasileira, Loki? chega aos 42 anos respirando ares de novidade. O primeiro (e melhor disco) solo de Arnaldo Baptista conquista cada vez mais novos públicos. E serve de fonte de inspirações para jovens (e antigas) levas de músicos. Equivalente a uma viagem para os cosmos sem espaçonave (ou uso de substâncias ilícitas, viu baby!), o trabalho mergulha no abismo existencial após sua abrupta ruptura com d’Os (lendários) Mutantes.

Clipe musical produzido para o Fantástico

Aliás, guitarra (mesmo a de seu irmão e gênio Sérgio Dias) nem fez falta no trabalho, que abusa de marchas-rancho, funk´s, música erudita e boogie woogie, com um toque de maestria psicoatiava. As harmonias são marteladas no furioso piano de Arnaldo, como forma de exteriorizar o mergulho radical em drogas pesadas e as perdas recentes (como a saída da banda e o fim do tumultuado relacionamento com Rita Lee).

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O piano e afins, afinal, serviram de válvula e adiou por sete anos a viagem quase sem volta ao inferno astral que Arnaldo atravessaria a partir da década seguinte. Som sinfônico compostos apenas com o apoio de contrabaixo e bateria. Para Arnaldo, trio perfeito para compor um clássico da psicodelia e (semi) progressivo tupiniquim. Disco de cabeceira.

E recheada de letras brilhantes e sacadas geniais, como “Let’s go to the sunshine/ Vamos pra onde eu vou/ Será que é difícil esquecer os males?”; ou “Quem já dançou sempre tem medo dos homens, baby/ Eu vou mais é me afundar na lingerie”; ou “Desculpe, mas, eu vou me fechar/ não sou perfeito, nem mesmo você é/ me abrace, diga-me o meu nome/ diga que você me quer/ sinto o pulso de todos os tempos, comigo”. Mais existencial que isso apenas um debate imaginário entre Kafka, Schopenhauer e Nietzsche.

O disco de 1974 completo

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Caixa de pandora escancarada e libertária das alucinações sonoras do eterno mutante fã de amplificadores valvulados. Em uma época a qual a liberdade criativa era trucidada pela censura, Loki? surge como um sopro de rebeldia e um grau de “subversão” acima de muito “álbuns de protesto” da turma cult emepebista.

As 10 faixas se tornariam hino dos desesperados. Uma brisa de probabilidade para a geração que vivia o fim de um sonho de Paz e Amor universal. A sleeping-bag dera lugar a repressão agravada no suspiro final da ditadura militar. Woodstock era página virada na história. Um retorno dolorido para a realidade sem as cores do Flower Power.

Arnaldo gravou Loki? aos 26 anos. Já era músico rodado, reconhecido pela genialidade – afinal, foi um dos motores criativos d’Os Mutantes – e comportamento explosivo e tempestivo. Tinha no currículo a produção dos dois primeiros discos de Rita Lee (na fase ainda com os irmãos Dias) e do compacto dos paulistanos Joelho de Porco (aliás, EP sensacional). Mas sucumbira a um inferno astral: sem banda, contrato com gravadoras, nem amigos e dinheiro. Pior, a carreira patinava na lama que caíra agravada pelo auto-exílio e abuso de substâncias pesadas.

O ex-líder da irreverente banda paulistana se enterrava num sítio no alto da Cantareira, na zona norte de São Paulo. Deixara o cabelo crescer e parecia querer se despedir da vida após experimentar fama e sucesso; posteriormente o descaso comum ao showbizz.

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com Sean Lennon, em 2000

 

No livro A Divina Comédia dos Mutantes, o jornalista e crítico musical Carlos Calado sustenta que Loki? não teve apoio da Philips, gravadora que acabara de dispensar sua antiga banda, à época sob a tutela de Sérgio Dias e inclinada à fase progressiva. Aliás, a falta de visão das multinacionais que controlavam o mercado fonográfico nacional de então se repetiu em boa parte da produção dos anos 60/70. Arnaldo tentava um acordo com André Midani, o todo-poderoso da filial no Brasil da major holandesa, mas sem sucesso. Ele teve todas as portas fechadas.

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O projeto foi bancado por (salve) Roberto Menescal, que exigiu para si a co-produção do petardo de 33 minutos e 40 segundos. Os executivos tentaram o desestimular da tarefa. Mas o sócio-fundador da bossa-nova manteve-se fiel a Arnaldo, que aguardava nesse álbum uma espécie de redenção. A função foi dividida com Marco Mazzola, que carregava na bagagem álbuns de Raul Seixas e o primeiro de Rita Lee pós Arnaldo Baptista.

Para isso, a dupla recrutou o insubstituível Rogério Duprat (arranjador e mente criativa do tropicalismo) e ex-companheiros, como baixista Liminha, o baterista Dinho Leme e Rita Lee nos vocais em duas canções. Fato a reunir pela última vez o quinteto “original” d’Os Mutantes num estúdio de gravação. Já Arnaldo tocou quase tudo: piano, órgão, clavinete, sintetizadores e violão de 12 cordas.

Retorno aos palcos após mais de 3 décadas

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Lendas urbanas atribuíram certa pressa da gravadora em encerrar o trabalho, ao ponto de o disco chegar incompleto às lojas. Assim, alijou o guitarrista e seu irmão Sérgio Dias das gravações durante a viagem psicoativa-existencial. Mas a ausência da guitarra era proposital.

A correria, entretanto, partiu de Arnaldo, agravada principalmente após as agitadas sessões com Rita Lee. Muitas faixas foram registradas apenas com piano, baixo e bateria em take único e ao vivo; ou seja, com o trio tocando ao mesmo tempo (formato que acho primordial para o rock visceral). E apesar dos inúmeros pedidos, os demais músicos não puderam refazer as bases. Era carga dramática demais para ele suportar por muito tempo. Essa atmosfera está visível faixa a faixa. Coube a Menescal e Duprat montar o quebra-cabeça incompleto para fazer um trabalho antológico.

Contudo, esforço em vão naquela ocasião. Loki? chegaria às lojas em 1974 lançado a própria sorte. A gravadora de matriz holandesa não bancou a divulgação do trabalho. Limitou-se a gravar um clipe para o Fantástico (época pré-MTV e anos-luz do youtube). Arnaldo pouco excursionou pelo País para divulgar o discaço recheado de pedradas confessionais. O álbum foi eleito pela revista Rolling Stone como o 34º melhor da música brasileira.

Desde a primeira faixa, Arnaldo deixa clara a consciência de ter sido engolido pelo sistema. Será que eu vou virar bolor? é da mais fina ironia acerca de seu prazo de validade prestes a vencer no (ingrato) mercado fonográfico tupiniquim, sob comando de limitadas visões culturais. Daí para frente, sente-se um leve parentesco com o som gestado pelos Mutantes. Está no DNA a sarcasmo travestido de crítica social, o deboche escancarado e a mais fina-flor do roque tupiniquim. Contudo, eram outros ares, outros timbres, novas sensações. O som era outro, mais profundo e interiorizado.

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Apresentação ao vivo com a Patrulha do Espaço

Arnaldo levaria pouco mais de meia-década para preparar outro álbum inédito. Nesse intervalo, montou uma super banda de hard rock, a lendária Patrulha do Espaço. E deixou dois LP’s com eles (um em estúdio e outro ao vivo), que só chegariam aos ouvidos dos antenados fãs no final dos anos 1980 e numa tiragem pífia por um minúsculo e obscuro selo paulistano. Abandonou também esse grupo e chegou a ensaiar um power-trio com Arnaldo Brandão (de A Bolha e Hanói-Hanói) e Lobão. A ideia patinou pouco antes do salto no escuro e queda no frio piso do estacionamento do Hospital dos Servidores Públicos.

No ano passado, a obra solo de Arnaldo Baptista voltou ao mercado, relançada digitalmente. Chegava ao fim mais de 30 anos que o mutante mantinha-se vivo por meio de cópias piratas.

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