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Arkie do BRock #15 – A primeira ópera-rock brasileira: Odair José e o Filho de José e Maria

Pete Townshend elevou-se um degrau na história do rock´n roll ao narrar a ascensão e queda de um líder espiritual. A descrição repleta de reviravolta traça o perfil psicológico de um garoto que, aos sete anos, se torna cego, mudo e surdo ao presenciar o assassinato de seu pai, recém regresso ao lar após ter sido dado morto durante a I Guerra Mundial. Entre abusos sofridos e a cura traumática, costura em fortes melodias até o derradeiro fim do Messias, que caiu em descrédito de seu rebanho pela ganância e o poder desmedido.

Tommy, o quarto trabalho de estúdio do The Who, é considerado a primeira ópera rock da discografia mundial. Abro aqui um parênteses, pois dois anos antes o obscuro grupo Nirvana (não confunda com o trio de Seattle) lançou The Story of Simon Simopath, que englobou todas as faixas num único enredo.

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Sem se preocupar com o pioneirismo, o álbum inaugural da fase ‘séria’ do grupo britânico semeou grãos que vão de The Kinks a Pink Floyd, passando pelo andrógeno Ziggy Stardust (alter ego de David Bowie?), Genesis, Frank Zappa e os palcos da Broadway (visto Jesus Superstar e Hair, por exemplo).

Pinball Wizard, momento de catarse em Tommy

E a biografia fictícia de Tommy Walker derreteu a cabeça de um dos mais populares compositores brasileiros da década de 1970. Após bater recorde de vendas com amores clandestinos em lugares insólitos e súplicas para que sua metade deixasse de usar anticoncepcional, Odair José ousou enveredar pelas sutis nuances do progressivo e do rock’n roll universal.

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A concepção do disco foi tão radical que parece trama costurado numa ópera rock. Odair José vendia tantos discos quanto Roberto Carlos por escancarar histórias que passavam despercebidas pelos outros artistas. Ele era certeiro em alcançar a massa com linguagens e temas comuns, em abordagens jamais utilizadas na popular música brasileira. Como o amor insólito como uma prostituta (opa, talvez você tenha ouvido algo parecido em Candy, de Iggy Pop). Façanha que o colocou no posto de cantor dos tabus.

Candy, com Iggy Pop e Kate Pierson

Foi então que ele resolveu mexer em outra casca de ferida. Em 1977, Odair José finalizou o obscuro disco O Filho de José e Maria. O enredo gira em torno da vida de um rapaz que enfrenta o Status-Quo, desafia os poderosos e encontra a felicidade aos 33 anos com um amor sem a bênção ‘cristã’, após décadas de solidão e rejeição social. Notou alguma semelhança? A Igreja Católica também. E desceu a lenha.

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Alguns clérigos viram na personagem um Cristo contemporâneo, com envolvimentos com drogas e em dúvida com a sua condição sexual. Chocou a opinião de religiosos a foto da capa: o cantor goiano sem camisa sob um neon com os sagrados nomes católicos. Somado a temática das composições, Odair José passou a ser persona non grata entre os ecumênicos e por pouco não foi excomungado.

O Filho de José e Maria é o nono disco de Odair José. E um ponto fora da curva na imensa discografia do compositor popular. Não agradou ao seu público cativo acostumado com estilo romântico enveredado ao cafona; nem a turma da MPB engajada, que o tratava como alienado por suas composições simplórias; tampouco a galera roqueira sob os trópicos, que nada entendeu da obra.

Filho de José e Maria de 1977

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O trabalho recebeu bombardeamento de críticas ao ponto de ele ser banido da programação de rádio e televisão à época. E desapareceu dos jornais e revistas. Resultado: a primeira ópera-rock tupiniquim empacou nas prateleiras. E só foi redescoberta nos anos finais da década de 1990, quando passou a ser venerada por novas legiões de fãs – composições dessa fase foram regravadas num disco-tributo ao cantor, de 2006.

A inspiração para o trabalho se deu por livros do escritor Kalil Gibran e discos de Jeff Beck e Peter Frampton. Também pela inquietação do goiano em montar uma banda com som cru e pesado. A ideia original do álbum previa 24 faixas em ordem cronológica desde o nascimento do protagonista até sua glória com a morte prematura.

O que viria a ser um disco duplo, formato que era espécie de coqueluche dos músicos naquela ocasião, após os apoteóticos lançamentos de Le-Gal – A Todo Vapor (Gal Costa) e o Clube da Esquina. Mas o projeto foi rejeitado pela Polydor – braço popular da poderosa Philips –, até então sua gravadora. Odair mudou-se pela RCA Victor, que o deu carta branca. Mas 14 letras das composições foram barradas pela censura pelo teor de suas composições consideradas subversivas e contra os bons costumes.

Clássicos do cantor popular na Todo Seu, da TV Gazeta

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O disco é recheado de fortes composições que abusam de melodias simples em complexos andamentos de compassos e harmonias. Como a faixa O Casamento, cuja narrativa é um diálogo entre o padre, autoritário e perverso, e o sacristão, conciliador. A canção insinua que José e Maria não eram casados quando conceberam o seu filho, o que despertou a ira do pároco fictício.

Mais a frente, o compositor anuncia o divórcio do místico casal. Chama a atenção que, à época, a discussão sobre a legalidade da separação estava em voga no Brasil. Ou seja, a grande façanha do trabalho é retirar a figura messiânica de Jesus dando-lhe pensamentos e ações com ares mais humanos. E, claro, questionar velhos dogmas e tradições religiosas enraizadas culturalmente. Explicado o porquê de a Igreja Católica ter colocado sua cabeça a prêmio.

O disco conceitual foi o maior fracasso comercial de Odair José. E, sem dúvida, o trabalho mais elaborado do artista. E pesa nisso o time montado para gravar o álbum. Maior parcela pelo som denso e volumoso está nas mãos de um dos mais badalados grupos de (samba) acid jazz: Azimuth.

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O trio formado por Ivan Conti “Mamão” (bateria), Alex Malheiros (baixo) e José Roberto Bertrami (órgão) era disputadíssimo para gravações em estúdio dos mais diversos gêneros. E nome do primeiro time do jazz fusion nos Estados Unidos. A super banda ainda recebeu apoio de Hyldon e Jaime Alem (guitarra e violão) e do fenomenal Robson Jorge (piano Fender Rhodes).

 

Apresentação na Virada Cultural, em 2013

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Após o fracasso comercial, o cantor goiano retomaria a linha romântico-popular. E trinta e seis anos após o lançamento do polêmico trabalho, Odair José foi convidado pela organização da Virada Cultural paulistana para apresentar o disco no Theatro Municipal de São Paulo. A apresentação virou um especial para o Canal Brasil e ganhou edição em DVD.

O discão progressivo de Odair José é mais um exemplo de um álbum brasileiro genial e complexo sucumbido pelo preconceito de seu artista e insipiência do público à época de seu lançamento. O Filho de José e Maria teve que aguardar a formação de novas gerações mais abertas ao som universal para ser compreendido em sua plenitude. O som é cru e experimental, com nuances capazes de fascinar os amantes das longas e complexas trilhas.

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