Com a prisão de Caetano e Gil, em dezembro de 1968, – e, posteriormente, o exílio da dupla na Inglaterra – a Tropicália começava a deixar no ar o ocre aroma de despedida. A cortina se fechava para o movimento de aparente desbunde que apontou o nariz contra os chapadões e reptou o aparelho repressivo da ditadura militar.
E, de quebra, fomentou as experimentações e inovações estéticas na música tupiniquim, então dominada pelo banquinho e violão ou canções de protesto. Era a versão à brasileira para o tsunami psicodélico do Verão do Amor. Movimento que gestou um dos mais icônicos álbuns da MPB.
Alijada dos sócios-fundadores e movida por fúria pela ainda confusa série de desdobramentos que expulsaram os dois baianos do País, Gal Costa gravou o mais ousado e radical disco de sua carreira. Passagem direta para as portas da percepção, o álbum lançado no segundo semestre de 1969 é carregado de ruídos semióticos, distorções e sujas mixagens que colocam o trabalho entre os melhores do sub-gênero do rock mundial.
Objeto sim, objeto não
https://www.youtube.com/watch?v=Ljm4oWVUxIA
Era um grito (quase) solitário da cantora na jornada para carregar o bastão tropicalista, esfacelado pelo autoritarismo vigente por essas bandas.
Sob a influência dos ensaios psicoativos testados pelos demais tropicalistas (vide Mutantes), Gal jogou-se numa viagem totalmente diferente de suas gravações até então. Surgia uma nova cantora, distante da Bossa-Nova que ela estampou em Domingo (1967), álbum de estreia que dividiu com Caetano.
A baiana caminhava para se distanciar da figura franzina e tímida para ajudar no alargamento da música jovem brasileira. Prova disso está no seu segundo disco, gravado em 1968 e lançado no ano seguinte, pois a gravadora Phillips retardou o lançamento por temer as reações após a detenção de Gil e Caetano.
Cultura e Civilização
Clássicos instantâneos como Baby e Divino, Maravilhoso; além das pérolas psicodélicas Não Identificado, Lost in the Paradise e Namorinho de Portão são um aperitivo para o vendaval multicolorido que se aproximaria.
Tal trabalho inicia uma incrível sequência de um dos mais ricos catálogos contraculturais da música brasileira. Estão ali as sementes psicoativas que iriam germinar até 1972 – quando Gal deu nova guinada em sua carreira. Quatro discos antológicos da baiana, que a consolidaram como uma das mais belas e cristalinas vozes de seu tempo.
A incursão à Era de Aquarius torna-se mais evidente no trabalho seguinte, lançado no segundo semestre de 1969. O petardo abre com uma explosão lisérgica num dos mais inspiradores e enigmáticos solos de guitarra. Proficiência psicodélica extraída de cordas abstrata: obra-prima do gênio Lanny Gordin.
O guitar hero tupiniquim estava em seu auge antes de se desplugar da realidade, numa batalha contra a esquizofrenia e abuso de LSD. Ele assinou alguns arranjos do disco, ao lado do (mito) Rogério Duprat (dobradinha que também ocorreu no trabalho anterior). E deixou como legado o seu melhor: um patchwork entre bossa-nova, rock e acid-jazz, com fraseados que carregam um vasto universo melódico, recheado de harmonias, notas improváveis e soluções cativantes.
Pulsars e Quasars
https://www.youtube.com/watch?v=CT_qA-S1LVA
Prova disso são as (magníficas) colagens de Objeto Sim, Objeto Não, Tuareg, Cinema Olímpia e Pulsars e Quasars. Exemplos da capacidade técnica do guitarrista nascido em Xangai (China) e tido como arquiteto guitarrístico da Tropicália.
Batizado simplesmente de Gal, o disco é, sem dúvida, o mais experimental e ácido trabalho da baiana. Alucinações e distorções que permeiam pelas nove faixas com alta dosagem de lisergia.
Logo nas primeiras notas, Gal solta a voz numa fusão de Janis Joplin e Grace Slick sob os trópicos. Ela canta, geme, berra, arranha a garganta, desafina e desafia o senso-comum, em versos como “A Cultura e a Civilização, elas que se danem. Ou não”. Genialidade!
Cinema Olympia
https://www.youtube.com/watch?v=hj0zoW332II
Tudo isso acompanhada de um sensacional instrumental repleto de guitarras cortantes e efeitos dionisíacos. Ecos altamente influenciados pelas distorções e fúria de Jimi Hendrix. Som que beira à perfeição para os mais aficionados pelas colagens psicoativas.
Mais uma incrível contribuição (do gênio) Rogério Duprat para o roque nacional. Momento raríssimo da música brasileira, que ainda distorce cerebelos mundo afora (basta se lembrar da mostra realizada em 2006 no centro cultural Barbican, em Londres, que celebrou a Tropicália).
O álbum de espírito roqueiro marca ainda a feliz união da baiana com Jards Macalé, músico carioca (injustamente) alocado à margem da indústria fonográfica. Casamento sonoro que daria mais dois laureados frutos: Le-gal (1970) e o primeiro álbum duplo da história nacional Fa-Tal Gal a Todo Vapor (1971), que foi captados a partir das alucinógenas apresentações ao vivo da cantora. Mas, aí, é assunto para outra coluna.