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Secos e Molhados. O Disco. A androgenia mascarada.

Em 1973 papai comprara nossa primeira televisão colorida. Uma Colorado RQ, enorme, valvulada. Para liga-la, papai (o único autorizado a mexer) puxava um botão e uma mancha colorida aparecia no meio da tela. Domingo, o Fantástico já era o programa da família, mas naquele específico domingo, papai tomou-nos pelas mãos e nos retirou da sala. Era a apresentação dos Secos e Molhados. O Vira. Uma canção que alternava foxtrote com fado e colecionava imagens obscuras e fantasiosas.

O vocalista estava praticamente nu e, no auge da ditadura militar, requebrava seu corpanzil magérrimo, com trejeitos absolutamente afinados.

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Papai era de longe um homem liberal, mas a cena lhe parecia inadequada para a reunião familiar. O grupo formado por Ney Matogrosso, João Ricardo e Gerson Conrad era uma excentricidade. Além da figura homossexual de Ney, os três pintavam os rostos para se apresentar, enchendo de mística e magia a sua presença no palco e nas telas.

Mas os Secos e Molhados não eram apenas o seu visual. O som era todo inspirado na revolução trazida pelos Mutantes e pelo Tropicalismo.

João Ricardo é filho do poeta João Apolinário e o grupo tornou-se especialista em musicar poemas, como a magnífica Rosa de Hiroshima, poema de Vinícius de Moraes; Amor, de Apolinário; Rondó do Capitão, de Manuel Bandeira, dentre outras.

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O primeiro LP traz a banda servida na mesa, em banquete, apenas com as cabeças expostas em bandejas.
Tudo no Secos e Molhados era ultrajante, mas nada era igual a Ney Matogrosso. Além da sua apresentação, maquiado e com uma enorme pena de pavão à cabeça, Ney era (e ainda é) dono se um dos mais afinados falsetes da história do disco. Sua afinação é icônica e sua dicção é absolutamente perfeita.

Durante os anos de censura, era complicado compor expondo toda a força de independência e liberdade nascida com a explosão do Flower Power. Mesmo assim, João Ricardo trouxe pérolas magníficas cheias de críticas ocultas.

Não há como confundir-se ao ouvir o baixo dando início à preciosidade Sangue Latino

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Jurei mentiras e sigo sozinho. Assumo os pecados.
Os ventos do norte não movem moinhos.

O ritmo é quase indígena e a apresentação visual da banda transforma Sangue Latino num hino da geração.

Minha canção preferida no disco é Fala, poema de João Ricardo musicado por Luhli, cuja produção é assinada porque contou com a participação de Zé Rodrix , que dedilhava seu teclado moog após a orquestra e os outros instrumentos cessarem, técnica que só pode ser ouvida nos CDs relançados do grupo já na década de 1990, pois no vinil original esta música continha 15 minutos a menos.

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Fala é um poema sobre a retórica de um protagonista com alguém cuja incapacidade de ouvir transforma a relação num grande monólogo egocêntrico.

A poesia trata de uma relação amorosa, mas é nítida a crítica ao silêncio imposto pela censura. Fazendo jus ao nome do grupo, um então fotógrafo do jornal carioca Última Hora, chamado Antônio Carlos Rodrigues, produziu uma mesa de jantar com produtos vendidos em armazém (nome genérico para secos e molhados), onde vemos broas, linguiças, cebolas, grãos de feijão, vinho barato da marca Único etc. O nome do grupo, em cima da mesa, em letras roxas brilhantes, alude à placa que João Ricardo teria visto numa visita à Ubatuba e que lhe deu a idéia para o nome do conjunto. Dentro das bandejas, estão as cabeças de Ney Matogrosso, João Ricardo, Gérson Conrad e Marcelo Frias (baterista que não aceitou integrar o grupo).

Secos e Molhados é um disco com vários estilos, como já dissemos, transformando a banda em inovadora e eclética. Em O Patrão Nosso de Cada Dia, por exemplo, é possível se identificar o folk americano sob influência de Crosby, Still, Nash & Young em De já vu.

Uma sonora bobagem foi defenestrada por Ney Matogrosso em entrevista ególatra, na qual afirma que o grupo estadunidense Kiss teria imitado os Secos e Molhados na maquiagem de rosto, isto depois de uma tour pelo México.

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Segundo Matogrosso, o primeiro disco do Kiss foi lançado em 1974, após esta tour. Tudo errado. Primeiro, porque o Gene Simmons e Paul Stanley já usavam a maquiagem desde 1972; segundo porque o primeiro LP do Kiss saiu no dia 18 de fevereiro de 1974, portanto antes da viagem dos Secos ao México, que foi em março. Caso encerrado.

De qualquer forma, Secos e Molhados é um disco obrigatório para quem admira a fusão entre a MPB e o samba rock.

Os temores de papai não faziam idéia do que se transformaria a androgenia, ou melhor, no que se transformaria a família. Hoje, as imagens dos Secos e Molhados são praticamente uma cena de circo mambembe. Nada demais.

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