A música nos fornece algumas experiências diárias muito loucas durante a jornada da nossa vida. Com a ajuda dela, revivemos momentos, redescobrimos histórias e geramos recordações que, enaltecidas pelo desejo nostálgico, responsabilizam-se pelo auge dos nossos estímulos sensoriais, emocionais e racionais. Sem ela, talvez, ficasse mais difícil para nós, seres dependentes da ajuda extra-campo, fantasiar qualquer tipo de memória obscurecida – daquelas que sabemos como aconteceu, mas preferimos enxergar segundo nossa retrofilia e idealização exacerbada de um fato comum.
Se isso é bom ou ruim, não importa muito; o sentimento é o mesmo, e o desejo constante de regresso pra passados pouco prováveis talvez seja uma das válvulas de escape necessárias pra um ser humano que, cada vez mais, passeia entre o passado e o futuro, esquecendo um pouco do presente.
É em virtude desse sentimento que existem sons que, muitas vezes, nunca ouvimos antes, mas nos remetem a lugares que não fazemos ideia de onde ficam. No Ruídos de hoje, um tanto pessoal, comentarei sobre um disco capaz de armazenar e potencializar todo esse sentimento nostálgico (e melancólico) presente em nossos corações: Sonhos & Memórias, um dos menos lembrados do Erasmo Carlos, que toca nesse ponto do cérebro como poucos já conseguiram.
https://www.youtube.com/watch?v=wAkCotCX3VY
Lançado como um retrato saudosista da infância do cantor, o disco, em questões sonoras, é o flerte clássico que o Erasmo sempre teve com o rock. Aqui, no entanto, a sutileza do cantor na hora de finalizar suas canções é um pouco maior do que em seus trabalhos da jovem guarda: todas as faixas são delicadas e muito pessoais (apesar de liricamente despretensiosas), e mostram a força de composição do artista, com temas íntimos que abordam sua família, casamento e infância. Tal como diz o nome do álbum, cada faixa parece um sonho literal, incluindo muitas influências (e referências) do Sgt. Peppers dos Beatles, mas sem abusar da lisergia desenfreada e apostando em algo mais soft em grande parte do trabalho.
Quem já leu minha coluna antes deve saber que costumo prezar muito mais pelo sentimento do que pela técnica. Como diria David Lynch, o que você sente é muito mais importante do que você entende, e dito isso (tomando como base o título e o prefácio da matéria), Sonhos & Memórias é responsável por uma sensação inigualável de certo saudosismo misterioso. Não é preciso ter vivido um terço dos anos 1970 para se sentir naturalmente teletransportado para a época em questão. É só ouvir segundos da introdução de músicas como Grilos ou Largo da Segunda Feira.
Outros grandes momentos do disco, como Meu Mar e Mundo Cão, por outro lado, cavam um buraco ainda maior, pois não apenas te levam à épocas em específico, mas soam como ruídos fantasmagóricos na sua mente, proporcionando uma saudade inexplicável de algo que você nunca presenciou, e muito menos sabe dizer o que é.
E o curioso nesse caso, é que as canções, quando olhadas por esse ponto de vista, apresentam uma acolhedora sensação de paz. Não é, nem de longe, um sentimento de lembranças associadas ao retrocesso, e sim uma nostalgia boa, tão saudável que se assemelha a abrir um álbum de fotos. A calma transmitida pela voz reverberada de Erasmo e por todo o conjunto de fatores, desde o órgão vintage em Sorriso Dela até a gravação da voz de uma criança na introdução de Vida Antiga, geram uma atmosfera relaxante, e fazem você se sentir como se estivesse em casa, comendo arroz com maionese e celebrando o Natal.
Fugindo um pouco das memórias trêmulas, o lado mais rocker do disco, que tem Bom Dia Rock N’ Roll e É Proibido Fumar, é o famoso espelho da distorção raíz (aquela sonzeira de guitarra ligada direto no AMPLIFICADOR), e também merece ser destacado. É essencial para contrastar com as faixas mais melancólicas (Sábado Morto) e viajantes (Minha Gente).
Resumindo a ópera, não tem nenhuma música ruim. Recomendo o disco de cabo a rabo, preferencialmente para ouvir enquanto viaja. Quem sabe, dessa forma, você não acaba criando boas memórias futuras com ele? É de se pensar. Pra fechar o artigo de hoje, segue o primeiro trecho da letra de Vida Antiga, uma metáfora minimalista pra essa coisa toda de saudade:
“Quero mandar de novo os meus recados
Contar de novo os meus pecados
E ver o céu que eu nunca vi …”
Um excelente final de semana a todos. Até a próxima sexta-feira.