RICARDO AMARAL
E o braço se levanta e, lentamente, retorna ao berço. Com as mãos trêmulas, ainda incrédulo do que ouvira, o garoto vira o disco e, com os dedos delicadamente a segurar a braço da vitrola, recoloca a agulha sobre o vinil… E vinha Harrison, sozinho, acompanhado por músicos indianos. Mesmo depois de canções repletas de “hinduísmo” em Rubber Soul e Revolver, Within you, without you transporta o ouvinte para um universo até então totalmente desconhecido. Além da música intensa e radiante, a letra define a pequeneza do ser humano diante de tudo que o cerca. George, definitivamente, assume um personalidade de líder e de grande compositor, junto a John e Paul.
Uma pequena pausa e, clarinete e bombardino? Uma valsa de pracinha! Perfeita roupagem para a letra estilo anos 20 e 30 da aristocracia média da velha ilha. A letra, totalmente McCartneyana, retrata a vida de um velho(?) casal de 64 anos de idade. Nos sessenta, poucos chegavam aos sessenta.
Na mesma toada poética, Lovely Rita, mais uma de Paul, descreve uma medidora de parquímetros (uma espécie de CET do bem) que se apaixona por seu narrador. Lennon e George produzem, com pente e papel, efeitos sonoros dos antigos folhetins do rádio. Good Morning, good morning, uma excentricidade de John Lennon inspirada num comercial de TV da Kellog’s Corn Flakes! A letra satiriza a vida perfeita ao redor de uma feliz família burguesa, ao redor da mesa matinal, tudo em razão da propaganda. Vários ruídos, ao final, sugerem imagens bucólicas, como uma caça a raposa até o cantar esganiçado de um galo, chamando a guitarra de Harrison para a próxima canção.
A Banda dos Corações Solitários do Sargento Pimenta inicia sua despedida com uma releitura da mesma canção de abertura, simplesmente repetindo-lhe o nome é distinguindo-a com o parêntese Reprise! E, ao fader da canção, um violão em arpejos apresenta o fim rude e cruel dos sonhos que o antecederam.
Um dia na vida… A day in the life, uma lenda, consegue, desde o disco Help, sincronizar as composições contíguas de Lennon e McCartney e criam uma atmosfera lúgubre e cínica sobre os sonhos e pesadelos comuns como a riqueza e a guerra. Eu gostaria de liga-lo, ou excita-lo, como queiram interpretar, sussurra o refrão.
E uma outra música, com outra divisão, chama Paul aos vocais retratando um cidadão acordando e postando-se pronto para mais um dia. Ele toma as escadas do double bus e acende um cigarro. Alguém fala…ele viaja…
E com um lado B que sustenta, completa e encerra o reverso, encerra-se o maior disco de todos os tempos com a música, considerada pelas Rolling Stones, como a mais bela canção dos Beatles. Encerra-se? Mais o que é isso??? Uma frase incompreensível, repete-se e repete-se, com sonoridade invertida. Muitos, no caminho dos mitos criados em torno do álbum, juram ouvir, ao tocar o trecho no sentido anti-horário, uma voz grave a rouca a dizer: -“Paul is dead”!!!!
2 Comments
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Samir Khoury
28 de fevereiro de 2017 at 12:44
Tal qual num transe hipnótico, ao surfar pelas imagens esculpidas letra a letra no lindo texto de Ricardo Amaral, tive a sensação de fazer parte desse histórico álbum. Talvez eu esteja aí cabisbaixo, ombreado aos ícones da capa enigmática, ou deslizando entre um sulco e outro do vinil, sendo decifrado pela sensibilidade da agulha da vitrola invadindo um clube sagrado, o solo negro e divino do LP Sgt Peppers LHCB.
A day in my life…
Ricardo Amaral
28 de fevereiro de 2017 at 19:46
Ao construir cada palavra de cada texto, tu sabe que sua sabedoria me vem a controlar, poeticamente, o equilíbrio entre o que sinto e o que devo expressar. Não me lembro de me sentir tão bem escrevendo como tenho sentido!