Válvula de Escape #19 – A mesma fossa de sempre em todos os dias de chuva

Válvula de Escape #19 – A mesma fossa de sempre em todos os dias de chuva

Carregado por um sentimento estranho trazido pelas chuvas do último fim de semana, fui obrigado a fazer algo mais pessoal para o texto desta semana. Todos temos discos ou canções que continuam mexendo conosco ano após ano. No meu caso, Me Chama é a música da vez neste sentido.

Conheci a faixa ainda na minha infância, talvez por influência paterna. Na época, apesar de tratar-se apenas de mais um MP3 no bolo de outros tantos arquivos daquele computador antigo, a música me trouxe uma sensação que eu só compreenderia mais tarde.

A canção, composta por Lobão, foi primeiramente lançada por Marina Lima no álbum Fullgáss, em 1983. A versão da cantora traz uma balada clássica, o que é indicado principalmente pela sua levada de bateria – que tem uma crescente a partir do trecho que antecede o “Mágica no absurdo” inicialmente, sendo que o mesmo ocorre posteriormente de antemão ao “Lágrima no Escuro”.

Vale pontuar que o baterista da banda que acompanhava Marina à época, era o próprio Lobão. O músico relançou a faixa no ano seguinte com o projeto Lobão e Os Ronaldos. Desta vez integrando o disco Ronaldo foi pra guerra, a faixa obtém uma melancolia maior, que é concebida através de um vocal que grita e, de fato, expressa o que é dito na letra. Definitivamente, isso é o o que mais me fascina na versão do grupo que ainda tinha Alice Pink Pank (ex-Gang 90), Guto Barros, Odeid Pomeranblum e Baster Barros em sua formação.

Em entrevista ao Canal Bis, pelo quadro Por Trás da Canção, Lobão contou “não queria ser artista solo”, já que “achava isso muito cafona”. Interessado em montar uma banda com o guitarrista Guto Barros, que retornara há pouco de Boston, Lobão teve de lidar com a perda de sua mãe antes de seguir com o grupo.

Ainda na matéria citada acima, o músico relatou o fato como “um grande trauma”. “Fiquei abaladíssimo. A Alice, que era minha namorada no momento, tinha sugerido que a gente fosse pra Holanda visitar a família dela. Aí lá no final da viagem, o pai dela morre. A Alice falou que ia ficar e eu voltei pra casa”, relatou.

Retornando ao Brasil mais triste do que estava antes da viagem à Europa, Lobão teve de lidar com uma péssima situação financeira, que somada à saudade da companheira, tornou-se uma inspiração para o cantor.

“Eu estava duro feito um louco e só comia mortadela porque não dava pra comer outra coisa. Eu não podia ligar pra ela porque o meu telefone estava cortado e eu ficava agoniado querendo que ela me telefonasse. Eu recebia ligação de fora, mas não podia ligar. Aí teve um dia desses, que chovia e chovia, era junho ou julho. Uma coisa assim.  Eu escrevi uma coisa óbvia como ‘Chove lá fora e aqui tá tanto frio, aonde tá você, me telefona’. Eu fui fazendo e fazendo, mas no fim achei uma porcaria.  Nesse meio tempo,chegou um amigo meu. Eu já ia rasgar o papel, quando ele insistiu pra ouvir”, afirmou.

No fim, o artista felizmente o escutou e a canção é lembrada até hoje como um dos marcos da década de 1980. Obrigado por compor minha fossa atemporal, Lobão. Deixo abaixo uma versão acústica da faixa, tão bela quanto ambas acima.