A assustadora avalanche ultraufanista Eu Te Amo, Meu Brasil colocou os integrantes de Os Incríveis em trincheiras opostas. A apropriação da música como propaganda do governo militar empurrou a banda ladeira a baixo num espiral político altamente perigoso nos anos do Ame-o ou Deixe-o. Tachados pelas alas mais radicais como alinhados com o regime de exceção, o vertiginoso sucesso radiofônico da bucólica melodia azedou a relação entre os músicos sobre os rumos profissionais a serem tomados.
E a barra pesou naqueles dias mais acinzentados dos Anos de Chumbo. Os dissabores com a estreita simpatia da gestão do general Emílio Garrastazu Médici (1905-1985) abreviou a primeira reunião da banda. E, pouco mais de uma década dos pioneiros ensaios, o grupo paulistano chegaria ao fim no ápice de sua popularidade. Netinho (baterista) e Manito (teclados, vocal e sax) partiram para novas cartadas no restrito universo roqueiro brasileiro de sntão.
Das cinzas da trupe que chegou ao estrelato de carona com o iê-iê-iê da Jovem Guarda surgiram duas das mais classudas bandas do roque setentista sob os trópicos: Casa das Máquinas e o Som Nosso de Cada Dia. A segunda gestou um clássico absoluto que, mesmo após mais de quatro décadas, continua atual para os fãs de longas e intrínsecas tramas do progressivo.
Clássico Snegs com faixa bônus O Guarani
A genealogia do SNCD permeia por uma superbanda de baile que se limitou a rigorosos e exaustivos ensaios. Batizado de Bloco Cabala, o projeto do multi-instrumentista Manito previa a participação de vários músicos, numa proposta mais inclinada à sonoridade de sua antiga banda. O grupo não vingou. Contudo, o feliz encontro com o (super) baixista Pedrão fez com que germinassem as raízes de Snegs, um marco no progressivo nacional.
Embora a expressão clássico tenha se tornado banal no universo roqueiro, ela bem resume o vigoroso disco. Gravado a toque de caixa nos meses finais de 1973, o álbum é uma porrada das melhores safras do progressivo mundial. E apesar da paupérrima e limitadíssima produção que prejudicou a sonoridade cunhada nos sulcos do vinil, o material não deve nada aos mais elaborados LPs de Emerson Lake & Palmer, King Crimson ou dos italianos do Premiata Forneria Marconi.
O mitológico Manito tocou quase todos os instrumentos, exceto a cozinha – que ficou a cargo de Pedrão (baixo) e Pedrinho Batera (bateria). O ex-Incrível assumiu os sintetizadores, teclados, pianos, violinos, saxes e flautas. E deu uma verdadeira aula de virtuosismo, voando alto igual a Ícaro em faixas como Massavilha, Direccion de Aquarius e Snegs de Biuffrais. As raríssimas guitarras do álbum – que aproxima ainda Snegs ao som proposto pelos britânicos do ELP – foram magistralmente captadas por Pedrão.
Improvisação sacada de um show de 1976
O material chegaria às lojas apenas em 1974, pelo selo Phonodisc, braço da pioneira no rock brazuca, Continental. E teve produção de Peninha Schmidt, que dois anos depois iria cometer uma das maiores atrocidades e desserviço ao BRock. À frente da produção do que se tornaria o primeiro disco ao vivo dos Mutantes, ele reduziu o show de duas horas ao tempo máximo de um LP, algo em torno de 40 minutos.
Peninha limou solos de guitarras e desprezou as longas passagens de sintetizadores diretamente da fita máster, sem ao menos se preocupar em fazer uma cópia de segurança. O resultado desagradou o grupo e quase pôs fim à última formação dos Mutantes – nessa fase, sem o artigo masculino no plural e ligado a complexas composições –, entretanto, a proposta progressiva do grupo é assunto para outra coluna.
Snegs é registro obrigatório na discografia básica dos fãs das longas suítes sinfônicas. O álbum carrega um turbilhão de influências, muitas das quais até então inéditas em solo tupiniquim. Há uma simbiose de progressivo sinfônico, jazz-rock, folk psicodélico, rock espacial, pitadas de blues e hard rock da melhor safra. Obra-prima do underground paulistano, o discaço é prova irrefutável da rica e forte cena progressiva nos anos iniciais da década de 1970 no País.
Versão ao vivo de Sinal da Paranóia
https://www.youtube.com/watch?v=QL2e91WIw8g
O som cunhado pelo power-trio chamou a atenção dos responsáveis pela turnê de Alice Cooper no Brasil. O cantor nascido em Detroit, nos EUA, vivia o ápice do sucesso por devorar morcegos, galinhas e outras aves durante as suas apresentações, num misto entre o grotesco e o obscuro choque provocativo ao público. E o SNCD abriu as cinco exibições do pai do gótico no Rio de Janeiro e São Paulo.
Manito, Pedrão e Pedro Batera levaram o público estimado em 140 mil pessoas a loucura. E até hoje, abundam relatos nos fóruns especializados de que a exibição do trio foi infinitamente superior à apresentação principal. Abro aqui parênteses, pois algo semelhante voltaria a acontecer na década seguinte, quando a lendária Patrulha do Espaço abriu o show do Van Halen. As lendas citam que a platéia exigiu o retorno da ex-banda de Arnaldo Baptista para os palcos, desprezando a trupe formada pelos irmãos Eddie e Alex
Rajada Runaway
https://www.youtube.com/watch?v=v9W64ZKBd98
Apesar do reconhecimento de público e crítica, ainda era restrito o acompanhamento midiático do fervilhante universo roqueiro underground no Brasil. E o Som Nosso teve um baque dias após as antológicas exibições ao lado de Cooper. Manito recebeu o irrecusável convite para se juntar aos Mutantes, ocasião que Rita Lee já fora defenestrada da trupe que criou.
Ele assumiu os teclados no lugar de Arnaldo Baptista, que rompeu com a banda deixando apenas seu irmão, Sérgio, remanescente da formação clássica. Contudo, o ex-Incrível teve vida curta no grupo paulistano. Manito passaria o bastão para o virtualíssimo Túlio Mourão, motor harmônico na fase mais progressiva dos Mutantes.
E o posto deixado pelo ex-Incríveis no SNDC foi ocupado por Tuca (teclado) e Egídio Conde (guitarrista), esse vindo do (sensacional) Moto Perpétuo, grupo que projetou Guilherme Arantes para o pop mais comercial na década seguinte. Com a nova formação, a trupe ficaria três anos longe dos estúdios até assinar com a CBS.
Blues do Verdi – Voando a 10.000 por hora
https://www.youtube.com/watch?v=kmXVhDr06Uo
Por exigência da gravadora, as longas e enigmáticas composições características do prog. ficaram em segundo plano. E o grupo apostou no suingue e balanço da black music e funk, ondas que ganhavam uma legião de adeptos e teve adesão de velhos e novos músicos.
Sob o título de Nosso Som, em 1977 a banda lançaria seu derradeiro trabalho antes de um hiato superior a três décadas. Esse disco é inspirado sob os ecos de Sly & the Family Stone, Funkadelic, Eric Burdon & War e Grand Funk Railroad.
A gafieira dominou o lado A, que foi batizado de Sábado. A metade da bolacha abre com um torpedo, a sensacional Pra Swingar, cujo arranjos de metais e piano estão no mesmo patamar do time da Motown. Já no lado B, a trupe resgata as ambientações baseadas no jazz e no avant-gard progressivo. Sonzeira para fazer cabeludos dançar e viajar pelos cosmos sem combustível.
O grupo se desmancharia no final daquele ano. Antes da prematura despedida, o SNCD deixou um compacto simples. E o título da faixa A inspirou o nome da banda carioca Black Rio, um dos mais cultuados grupo instrumental carioca.
Segundo LP, Nosso Som de 1977
https://www.youtube.com/watch?v=1I_GzeGUfus
Snegs voltaria às lojas para o deleite das novas gerações apenas no final da década de 1980, numa reedição em vinil bancada pela lendária Baratos e Afins; o único pecado, entretanto, foi limar o encarte original.
E em 1993, finalmente as longas suítes ganhariam vida digital. O selo Progressive Rock Worldwide arcou com a remasterização do petardo, equalizando alguns dos defeitos técnicos impostos devido às precárias condições dos estúdios brasileiros na gravação original. O grupo se reuniu para cunhar uma livre de derradeira adaptação da peça sinfônica do O Guarani, de Carlos Gomes (1836-96). A sensacional releitura entrou como faixa bônus no disquinho óptico.
Com a abertura da Caixa de Pandora do Brock, Som Nosso passou a ser venerando como um dos gigantes. O reconhecimento tardio originou uma série de reencontros de seus ex-integrantes e um disco ao vivo em 1994. Já no atual milênio, a banda abriria seus registros secretos para satisfazer novos e velhos fãs das complexas composições. O que desencadeou espetaculares bootleg´s, com íntegras de shows realizados na década de 1970.
Variações sobre Neblina
https://www.youtube.com/watch?v=A7QZwzmQ90M
De forma oficial, o grupo lançou apenas um apanhado de versões captadas nos palcos. O discaço duplo recebeu o sugestivo título A Procura da Essência (Ao Vivo 1975-1976) – nome sacado de um dos versos de Sinal da Paranóia, presente no álbum de debute da trupe. Cuidadosamente selecionado pelos integrantes da banda, o registro reúne rica safra de improvisações e versões estendidas de antigos clássicos de seu período mais progressivo. O material inclui a inédita e lendária suíte Amazônia, nunca lançada de forma integral.