*Guilhermo Araujo Blanco, o Memê
O convite veio por meio de um amigo. Era finalzinho de setembro de 1993. Lá se vão quase 27 anos… O telefonema resumidamente era o seguinte: estão precisando de roadie de guitarra, na verdade um guitar tech com experiência, para o Free Jazz Festival, tá a fim?
Eu já era luthier, guitarrista e também trabalhava como roadie do Edgar Scandurra (Ira!) na época. Não teria problemas em enfrentar o “desafio”.
Além do compromisso e um certo orgulho de estar num grande evento, de nível internacional, tive a agradável surpresa na escala do batente no antigo Palace, em São Paulo, para a noite de 30 de setembro. No line up, Chuck Berry e Little Richard. Ual! Os dois já com idade avançada, mas verdadeiras lendas ainda em atividade e que eu admirava muito.
O trabalho foi explicado minuciosamente por Pena Schimidt, o diretor de palco daquele Free Jazz. Sim, era o Peninha, produtor de bandas como Os Mutantes, Ira, Ultraje a Rigor, Titãs, entre muitos outros artistas de sucesso.
Atendendo os pedidos de Chuck Berry
Re-su-mi-da-men-te, Pena explicou que era para atender todos os pedidos, no meu caso principalmente do Chuck Berry, que se relacionassem com a guitarra do Chuck e as do guitarrista da banda do Little Richard. Simples!
As orientações eram muitas, as especificações técnicas enchiam algumas folhas e falhavam na exatidão. Não falar com Chuck Berry, de forma alguma, era a principal das normas de “comportamento”.
Havia até multa prevista no contrato caso alguém falasse com ele. Eu “sabia” que Chuck Berry era meio carne de pescoço porque tinha assistido ao filme documentário sobre ele Hail Hail Rock’n’Roll.
O velho Chuck não trouxe banda, apenas um baixista. A organização que tratasse de arrumar músicos capazes de fazer a cozinha do som dele. E o resto deixasse com ele no palco.
Outra exigência de Chuck eram dois amplificadores específicos cujos únicos disponíveis eram de uma locadora de Nova York. Pelo jeito, eram alugados só para ele. Esses vieram dias antes.
Os amplies eram de um modelo nunca antes visto por ninguém aqui. Tinham caixa com dois alto-falantes de 15 polegadas, totalmente atípicos para guitarra e mais usados por baixistas. Os equipamentos chegaram com muitos ruídos. Chamei o amigo e falecido Hélio Aguirre, que foi ao Palace e deu jeito neles. O pagamento para o Hélio foi um ingresso para o show. Eram outros tempos.
Fender ou Gibson para Chuck Berry?
Junto com o baixista, que era na verdade um vizinho muito gente boa com o qual ele fazia churrascos, vieram com o velho Chuck, no avião, o baixo e uma guitarra Fender. Eu achei estranho. Nunca tinha visto nos vídeos Chuck Berry com uma Fender, era sempre com Gibson (a 335, mais especificamente).
Ele rejeitou a Fender, o que eu já esperava, e pediu a 335. Fui ao depósito do festival ver se a encontrava e, surpresa, nenhuma guitarra disponível. Impasse, atraso…
Começou então a caça por Gibsons 335. De telefonema em telefonema fomos atrás (lembrem-se que estávamos no começo dos anos 90). Pena e eu chegamos a uma lista grande de donos de Gibsons 335 e as características do instrumento.
Entre outros da lista dos que topavam ceder ou alugar uma 335, músicos como Victor Biglione, Marcelo Nova, lojas da Teodoro Sampaio, locadoras (Gang, Crocodile), Cláudio Celso, André Christovam. Uma lista imensa de 335s com ano de fabricação, cor e outras especificações. Ele optou pela Gibson Chet Atkins 335 sst do Marcelo Nova, do Camisa de Vênus. Uma semi acústica.
Ao contrário das ordens, falei com Chuck Berry. Aliás, ele que falou. Fazia questionamentos, na verdade, para saber o quanto estávamos preparados. Pediu para trocar as cordas da guitarra do Marcelo Nova. Calmo, mas exigente, me chamou três vezes no camarim antes da passagem de som e do show. Muito porque eu falava inglês e nem todos conseguiam se comunicar com ele.
Conflito com Little Richard
A poucas horas antes da grande noite, mais um embrulho. Ao saber que subiria ao palco antes de Little Richard, ele disse que não faria o show. Ou ele encerrava ou não se apresentaria. Little Richard, muito mais zen, não ficou melindrado.
A mudança exigiu mais trabalho dos roadies e desse guitar tech que escreve. Virar palco, trocar amplificadores, posição, todo o mapa de palco do Little Richards trocado em cima da hora pelo de Chuck Berry. Trabalho sempre é assim.
A set list abriu com Johnny B. Goode, seguiu com Roll Over, Nadine, Bio, entre outros clássicos que tomaram conta do palco do Palace. Eu ali, com tudo muito perto, vendo aquele senhor que admirava, mas ao mesmo tempo estava bastante preocupado que desse algum problema com a guitarra ou com o amplificador esquisitão dele. Deu tudo certo!
E o trabalho foi esse. Virar palco, trocar cordas, conferir cabos, prever problemas, arrumar guitarras e amplificadores. Tudo numa velocidade tremenda. Mais de 15 horas de trabalho num único dia, sem parar. Sobre a outra atração da noite blueszeira do Free Jazz Festival de 1993, Little Richard, fica para outro relato.
Little Richard mais amável
Sim, eu sei, mas ainda é muito cedo para falar de Little Richards, falecido recentemente. Deixemos ele descansar. Mas pelo pouco que convivi, o Little, ao contrário de Chuck, era mais amável.
Também bastante quieto, Little Richard quando subiu no palco para a passagem de som exalava um excelente perfume. Aí eu fiz uma brincadeira. “Smell Good “, cheiro bom… falei. Aquele senhorzinho famoso fez um agradecimento tímido, meio sem jeito e surpreso pelo elogio.
Além dessa noite memorável do Palace, estive com os dois senhores do blues mais uma vez, uma semana depois, para um show no Tobogã do Pacaembu.
Enquanto ajeitava a Gibson 335 para Chuck Berry, puxei uns acordes com o baixista boa gente dele. Ao lado do palco, se preparando para a passagem, ele fez um sinalzinho de ok. Já era bastante vindo dele, que era muito sério e um dos maiores hitmakers da história.
Desejo que fiquem em paz essas duas lendas do blues, que colaboraram para a moldar a minha vocação para o Rock Guitar, meu sonho, minha realidade, minha profissão e vida até os dias de hoje.
*Guilhermo Araujo Blanco, o Memê, é guitarrista da banda Ex Machina, luthier e guitar tech e trabalhou, por longos anos, com Edgar Scandurra e Jorge Benjor e atualmente com a banda de Fafá de Belém.