Reunir integrantes lendários de bandas de punk rock e hardcore para celebrar a música com versões bem especiais de clássicos pop é uma receita imbatível. Há quase 30 anos, o Me First and The Gimme Gimmes é referência nisso. Se autointitula a melhor banda cover do mundo. E não estão errados.
Mais uma prova disso foi dada no mês passado, quando a banda divulgou o nono álbum da carreira, ¡Blow it…at Madison’s Quinceañera!, que mescla clássicos como Dancing Queen (Abba) e Changes (Black Sabbath) até hits moderninhos como Good 4 U (Olivia Rodrigo), passando por uma extensa lista de canções em espanhol.
Atualmente, o Me First and The Gimme Gimmes conta com uma formação quase fixa, com Spike Slawson (Swingin’ Utters), Joey Cape (Lag Wagon), CJ Ramone (Ramones), Jake Kiley (Strung Out), John Reis (Rocket from the Crypt) e Andrew Pinching (The Damned).
Spike é o grande capitão dos Gimmes. Presente desde o início, assim como Joey Cape, ele é o vocalista e responsável por reunir essa turma de peso.
Durante a pandemia, em 2020, Spike foi peça importante na campanha Juntos Pela Vila Gilda, realizada pelo Blog n’ Roll e Instituto Arte no Dique, em uma super live com dois dias de duração. Ainda debilitado por um problema de saúde que enfrentava na época, o músico pediu para continuar no lineup e prometeu uma grande surpresa: gravou Baby, de Caetano Veloso, totalmente em português.
Aliás, Spike tem grande facilidade em aprender idiomas e homenagear países. Já gravou EP em japonês, caprichou no espanhol no álbum novo, além de ter prestado um tributo para músicos australianos em outro EP do Me First and The Gimme Gimmes.
Entrevista de Spike Slawson, vocalista do Me First and The Gimme Gimmes
Durante a turnê do Me First and The Gimme Gimmes pela Europa, no começo do mês, Spike conversou com o Blog n’ Roll, via Zoom, sobre o novo álbum, música brasileira, entre outros assuntos.
Logo no começo da nossa conversa, Spike retornou de uma experiência um pouco assustadora em sua estreia no Brasil. Em 2018, quando veio a São Paulo para um show no Espaço 555 com o Me First and The Gimme Gimmes, o artista foi surpreendido com o desabamento do prédio Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, no Centro, que deixou sete moradores mortos e dois desaparecidos.
“São Paulo é uma cidade louca. Eu saí e alguém disse: ‘não vá nessa direção, não vá nessa direção, não vá nessa direção’. E naquele dia um prédio simplesmente desabou a menos de meio quarteirão de nós. Foi terrível. Passamos alguns dias depois e ainda havia fumaça e cinzas no lugar”.
Mas, no geral, a experiência foi especial. “Nós andamos por São Paulo, nos divertimos. Na República, bairro que ficamos, consegui comprar discos do Caetano Veloso, Gilberto Gil, Os Mutantes, entre outros artistas nacionais. Discos que ainda ouço quase todos os dias”.
Você mantém sua coleção de vinis sempre atualizada?
Sim, acho legal quando você tem esse tipo de relacionamento com a música, comprar discos e ter tempo para ouvi-los. Agora é o Spotify, tudo ficou muito fácil. Mas você não tem essa experiência.
Quanto mais acesso à informação e à cultura tivermos, menos valor terá a informação e a cultura. Quanto mais acesso à chamada verdade que tivermos, menos verdadeira será a verdade. É muito contraditório.
Mas com os discos, sinto que o objetivo era colocar um disco e ir para um mundo diferente por meia hora ou 45 minutos.
E aquele disco do Caetano Veloso, homônimo, que tem Clarice, Soy Loco Por Ti, America, todas essas coisas, você pode ouvir aquilo do início ao fim e vai para um mundo diferente por 45 minutos. Spike Slawson, vocalista do Me First and The Gimme Gimmes
Então, acho que eles tornaram tão fácil para o Napster, iTunes e Spotify roubarem músicas essencialmente porque eles gravaram três músicas boas e isso tornou tudo mais fácil. Esse foi o modelo de negócio, três músicas boas, nove músicas completas. Como músicos, nós meio que fizemos isso conosco.
Você está bem habituado com a música brasileira. Gostei das referências.
Obrigado. Conheço algumas coisas da Tropicália como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Os Mutantes. Adoro Os Mutantes, Bat Macumba é incrível. Eu amo essa música. Jorge Ben, uau, adoro Jorge Ben.
Amo Coffin Joe, mesmo que ele não seja da música. Como se diz Coffin Joe em português mesmo? Qual era o nome dele? Você sabe de quem estou falando? O vampiro com unhas compridas, usava uma cartola. Ele morreu há alguns anos.
Zé do Caixão?
Sim! Ele concorreu a um cargo político em São Paulo. Ele estava nesses filmes em que parecia um tipo estranho de vampiro. Sempre havia sexo estranho acontecendo, com cores psicodélicas.
Ele é como um ícone cult. Todo mundo da minha idade sabe exatamente quem é. Eu amo os filmes dele. Muitos americanos adoram Coffin Joe. Spike Slawson, vocalista do Me First and The Gimme Gimmes
Os americanos amam a cultura trash de todo o mundo porque somos um lixo, somos ignorantes.
Muito bom. Vou perguntar um pouco sobre o Quinceañera. Como surgiu a ideia do novo álbum dos Gimmes?
Desde o disco do bar mitzvah (Ruin Jonny’s Bar Mitzvah, de 2004), eu queria tocar em outro evento ao vivo. Mas como uma festa familiar íntima. Onde ninguém saiba quem somos, claro, para não recebermos aplausos.
Há um pouco de tensão nisso, não sabemos se vamos conquistar a torcida, o ouvinte não sabe. Portanto, há um pequeno arco dramático.
Pensei numa festa de Quinceañera, por morarmos na Califórnia, na Bay Area. Mas especialmente no sul da Califórnia, Los Angeles e San Diego, há muitos mexicanos. Logo, esse tipo de festa para as meninas que estão completando 15 anos é muito comum.
Aliás, muitas vezes acabam por ser uma festa para toda a família. Por que uma festa de aniversário de 15 anos precisa de cinco barris de cerveja? Você sabe o que quero dizer?
Sempre quis ir à uma festa de Quinceañera, mesmo que não fosse para tocar, só para ser convidado mesmo. Eu amo música em espanhol. Adoro boleros, os grupos dos anos 1950 e 1960, nomes como Los Ponchos, Los Diamantes, Los Tres Haces e Los Tecolines.
Até comecei uma banda com alguns amigos panamenhos chamada Los Nuevos Bajos. É algo que queria fazer há muito tempo.
Musicalmente fiquei um pouco intimidado porque não sabia se minha pronúncia estava correta. Mas um dos meus amigos panamenhos disse: ‘seu espanhol não é perfeito, mas é respeitoso’. Você precisa saber o mínimo para ser compreendido. Nunca vai pronunciar algo perfeitamente, mas pelo menos tente.
Você já havia conversado em espanhol durante os shows?
Lembro-me da primeira vez, por exemplo, há muitos anos. Toquei com o Los Nuevos Bajos na Cidade do Panamá. Foi a primeira vez que tentei fazer espanhol para um público que falava espanhol. E eu estava tão nervoso.
Alguém me perguntou se eu estava pronto. E eu tive que ser honesto: ‘não, não estou pronto’. Foi como saltar de paraquedas ou bungee jumping, algo que aconteceu novamente na Quinceañera.
Mas, ao mesmo tempo, não posso esquecer que é um evento muito importante, não só na vida do convidado de honra, mas de toda a família. Então tive que traçar uma linha muito tênue entre brincar e honrar a ocasião. Espero que tenhamos conseguido.
Direi que o DJ, entre os dois sets, e no final do nosso segundo e último set, tocou muita música do atual milênio, na qual não somos muito bons. Madison e suas amigas se divertiram muito.
Mas é assim que são nossos shows ao vivo. Eu percebo, especialmente, quando estamos em festivais ou abrindo para artistas como o Violent Femmes e o Flogging Molly. E percebemos muito rapidamente que nosso papel naquela turnê era tocar os calcanhares.
Não sei se isso se traduz facilmente no Brasil. É como na luta livre, que você tem um calcanhar. Todos querem bancar o herói, mas nós temos que bancar os trolls, nós somos o Rudolph.
Somos como o vilão da noite. E mesmo em nosso próprio show, tentamos enganar a multidão a ponto de expressarmos vocalmente descontentamento. Mas depois tentamos puxá-los de volta. E nem sempre sabemos se podemos fazer isso. Spike Slawson, vocalista do Me First and The Gimme Gimmes
Como disse CJ, se você sai de um show nosso e não sabe se deve ficar ofendido, entretido ou indignado, é porque conseguimos fazer nosso trabalho.
Mas os Gimmes realmente invadiram a Quinceañera? Ou foi planejado?
Nós não fizemos isso. Acho que isso não teria corrido tão bem se tivéssemos invadido a festa. Porque mesmo com uma festa pré-combinada, as pessoas iam embora no meio das nossas músicas em determinados momentos. Isso foi um pouco desanimador, mas lutamos para sobreviver.
O que aconteceu foi que nós e uma estação de rádio de San Diego, onde aconteceu o evento, organizamos um concurso. Não queríamos que nada fosse problemático, mas também não queríamos que funcionasse muito bem. Queríamos necessariamente que alguém que fosse fã estivesse presente.
Quando finalmente tocamos a música de Olivia Rodrigo, que é a única canção do século atual do set, o público curtiu.
Você nem sempre vai gostar de nós no começo do show, mas esperamos que no final tenhamos você do nosso lado.
Eu acho que se você não estiver lutando constantemente como uma banda ao vivo, você perderá público. Spike Slawson, vocalista do Me First and The Gimme Gimmes
Não é engraçado como a mente humana funciona?
Quem é a pessoa dos Gimmes que pensa em todo esse processo criativo?
Não quero subestimar o quanto nossa gerente e consultora de moda, Audra Anjali Morris, se dedicou ao projeto. Ela produziu o evento. Visualmente é tudo ela. É uma visionária!
No que diz respeito à aparência, roupas e figurinos, é ela que torna mais fácil habitar uma personalidade diferente para a gente.
Acho que é assim que a essência de atuar e se expressar funciona em um cenário ao vivo. É se tornar uma espécie de personagem.
Quando vejo uma multidão, não quero apoio e aprovação incondicional. Isso só me faz sentir um pouco mal do estômago. Tipo, o que eu quero é tensão, constrangimento, trollagem e indignação. Spike Slawson, vocalista do Me First and The Gimme Gimmes
Ontem à noite em Paris, eles estavam vaiando em determinado momento, mas nós os recuperamos. Era um público sofisticado como em São Paulo.
O que você lembra do show dos Gimmes em São Paulo? Você se lembra de alguma coisa que chamou sua atenção? Por que você acha que o público é sofisticado?
Porque é uma cidade musical, multicultural. E o Brasil em geral é assim. Mas quer dizer, Os Mutantes eram de São Paulo, certo?
“Não sei, comigo vai tudo azul. Contigo vai tudo em paz. Vivemos na melhor cidade da América do Sul, da América do Sul”
É a melhor cidade da América do Sul. E se Os Mutantes dizem isso, quem sou eu para discordar?
As bandas americanas e inglesas, dos movimentos hippie e punk, gostam de se considerar revolucionárias, certo? Mas Caetano Veloso foi preso durante o regime militar. Spike Slawson, vocalista do Me First and The Gimme Gimmes
Spike, você falou sobre a música da Olivia Rodrigo. Como os Gimmes chegaram a essa música?
Foi a nossa equipe troll que escolheu. Percebemos que não havia músicas para um público adolescente. O máximo era na casa dos 30 anos. Mas faz parte, estou na meia-idade caso consiga chegar aos 110 anos. Você entende o que quero dizer?
E a festa, aparentemente, era para essa jovem e seus amigos. E John Reis, que tocou no disco, foi quem escolheu essa música. Ele tem um filho que está entrando na faculdade e indicou.
Eu nunca tinha ouvido falar de Olivia Rodrigo, eis que descobri que ela tem 2 milhões de seguidores no Instagram. E nós tocamos essa música ao vivo em nosso set agora. É uma loucura.
Talvez os pais tragam seus filhos adolescentes ou de 12 anos para o nosso show e eles parecem entediados por cerca de 45 minutos a uma hora. “Pai, podemos ir para casa, por favor?” Então, finalmente, tocamos aquela música e eles cantam juntos.
Quando começamos a banda, os primeiros discos, especialmente o primeiro, os mais novos tocavam em seus quartos, e seus pais diziam: “ei, eu conheço essa música”.
Os mais novos ficaram chocados e consternados. Ou foi uma experiência legal de vínculo familiar que eles tivessem essas músicas em comum. Houve uma dinâmica, seja ela positiva ou negativa.
Acho que a única música que conseguimos tirar da cartola foi a da Olivia Rodrigo. Brincamos no início do set quando fingimos que atenderíamos pedidos.
O Me First and The Gimme Gimmes tem uma timeline extensa de integrantes, mas parece trabalhar com uma formação mais fixa. É isso mesmo?
Todos os nossos membros estão naturalmente envolvidos em outros projetos, nem sempre podemos contar com todos. Então, estamos sempre abertos a novos integrantes. Mas, dito isso, estou muito feliz com as pessoas com quem tenho tocado ultimamente. Eles são muito solidários, ótimos companheiros de viagem e excepcionais músicos. Temos nos divertido muito.
Para fechar, queria saber quais são os três álbuns que mais te marcaram como músico. Por que?
As músicas de Stevie Wonder são definitivamente minhas favoritas. E isso meio que informa tudo o que faço, porque mesmo que não musicalmente, apenas a atitude, positividade e o otimismo implacáveis e até mesmo irracionais são apenas uma espécie de… Se você tem um cérebro como o meu, isso é um ato de pura vontade e deliberação. Não é um padrão natural.
Eu não sou uma pessoa relaxada, otimista ou positiva. Portanto, requer trabalho real. Às vezes requer a voz de outra pessoa.
E a voz dele sempre foi apenas algo no fundo da minha mente para não sentir pena de mim mesmo ou para não ser negativo. É uma mensagem de amor e tolerância. Ele fala muito sobre Deus, mas sou capaz de transfigurar Deus em alguma coisa.
Porque não sou uma pessoa religiosa em si, mas acredito em algum tipo de poder superior.
Há uma banda australiana chamada The Saints. E o segundo disco deles, Eternally Yours, me surpreendeu. Tive a sorte de ouvi-lo quando tinha 14 anos, porque tinha um amigo mais velho que sempre colocava para eu ouvir. Foi alucinante! Quanto mais descobria sobre eles, mais ficava doido.
Acho que eles mal tinham Ramones ou Iggy Pop como exemplo, eles não sabiam ser punk. O único cara deles tinha cabelo comprido, mas eles tocavam uma música punk rock and roll cruel e crua antes de qualquer outra pessoa tocá-la. Eles foram, para mim, um dos inventores da chamada música punk.
Acho que em Eternally Yours, eles tinham até o cara que tocaria baixo no The Damned, o Algy Ward. Eles tiveram uma seção de sopros. Ninguém sabia quais eram as regras do punk, mas acho que todo mundo sabia que não existe a porra de uma seção de sopros. Mas eles fizeram isso, e é uma das músicas mais pesadas de todos os tempos. É uma música tão boa. Know Your Product, a primeira música de Eternally Yours. É apenas um hino para mim.
Por fim, não sei se é um disco específico, mas é um grupo incrível: Trio Los Panchos. Eles tiveram muitas formações diferentes, mas minha fase favorita é com um cantor chamado Johnny Albino. Ele é um carinha de Porto Rico que cantava com voz de mulher. Não sei mais como descrevê-lo.
Se você ouvir as gravações ao vivo dos Los Panchos no Peru ou Argentina, há festa para todos os integrantes. Mas, quando apresentam Johnny Albino com a voz feminina, uma apresentação meio andrógina, as mulheres na plateia enlouquecem. Você pode ouvir isso, é tão louco.
Infelizmente, acho que ele e Los Panchos tiveram uma separação controversa. Não acho que tenha sido muito amigável, mas essa é a era dourada de Los Panchos.
Obrigado por essa aula, Spike. Espero vocês no Brasil.
Nós também. Queremos muito voltar ao Brasil.