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As Mercenárias ou por uma poética da fúria

MARCELO ARIEL

“A banda foi importantíssima na minha vida e na de muita gente. E continua sendo. Pelas melodias, pela conduta, pela poética, pelo feminismo “intuitivo” (antes mesmo de ser declarado ou compreendido como feminismo, seja ele intuitivo ou não), pela resistência, pelos vestidos e coturnos, pelas mulheres todas ali representadas – distantes de um femiNINO consensualmente tido como caracterizador do “ser mulher” – e, por isso mesmo, muitas vezes invisíveis.

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A banda As Mercenárias surpreende pela capacidade de estar viva e pulsante, por trazer contínuas novidades. Não só para os ex-jovens dos anos 1980, é coisa atual, atualíssima, arte-musical-punk-furiosa, perfeita pra retratar os nossos dias (ou será que o Brasil andou apenas em círculos?) sem qualquer traço da decadência ou da falta de coesão que vemos em tantas ex-super-bandas-agora-sobreviventes por aí.

As Mercenárias é um núcleo regido pela atemporalidade, há musas invisíveis e suspensas ao lado de cada uma de suas integrantes, é o que creio e sinto ao ouvir hinos como Honra, Além Acima, Inimigo, Loucos Sentimentos, Além Acima. Ainda vou escrever um livro sobre isso.”

(CRISTINA JUDAR)

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Com dois discos lançados e participação em duas coletâneas importantes e representativas, a banda As Mercenárias deslocou a canção punk para um lugar de representação de uma poética da fúria, digo “Fúria” no sentido mitológico grego. As Fúrias também chamadas de Erínias eram deusas encarregadas de fazer justiça, de justiçar os crimes sanguinários, hoje poderiam ser evcocadas contra o Governo Brasileiro e contra todos os governos.

Vejo “As Mercenárias” como as Erínias do rock brasileiro, dinamizadoras de um poderoso Etos feminino, os gritos primais de Rosália são um grande momento da canção de protesto no Brasil, por evocarem uma “dor indizível”, é obviamente um grito contra a opressão secularizada. Este é um grupo que em suas apresentações com o baixo cadenciado como arma de guerra de Sandra Coutinho, sempre ironizou essa noção de espetáculo, se movendo com uma raivosa elegância dentro do chamado “campo de entretenimento”.

Sandra Coutinho inclusive viveu um exílio voluntário na Alemanha, por muito tempo. Esse hiato gerado pelo “exílio” de Sandra afastou o grupo de uma certa zona nostálgica, digamos assim, que as levaria a uma tentativa de recuperação e repetição, não é o caso desta banda, em seus shows recentes não existe uma recuperação, mas uma atualização, as canções além de uma forte conexão com o presente, são melodicamente ricas, algo raro em uma banda punk e flertam com o dodecafonismo.

As canções das Mercenárias possuem uma escrita poética sintética, minimalista mas não próxima da poesia concreta, se associam com a concisão das letras punks, mas não se reduzem ao recorte de crônica sociológica.

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A letra de Cadê as armas?, que reproduzimos abaixo, é profética, de certo modo antecipou os eventos de junho de 2013 ou remete a uma guerra civil nada sutil que mais cedo ou mais tarde poderá ocorrer nas proximidades de um “Velho Teatro”:

Cadê as armas?

Tantas barricadas como em pesadelo
No centro da cidade névoas de fumaça
O velho teatro brilhando entre chamas
Numa invasão de antigos bárbaros

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Vitrines quebradas, imagens da fúria
Do alto de edifícios papéis são picados
As tribos dançando em volta das fogueiras
Fazem nas escadas o altar de sacrifícios

Tantas barricadas como em pesadelo
No centro da cidade névoas de fumaça
Os gatos assistem ônibus virados
A dança enlouquece, rojões atirados

A banda musicou OS PROVÉRBIOS DO INFERNO de William Blake na tradução de Paulo Vizioli, um feito memorável, porque elas redimensionaram o poema de Blake confrontando o texto visionário e mítico do poeta inglês com a realidade brasileira. O poema em português foi ampliado para outras linhas de fuga, basta lermos com atenção a letra e depois ouvirmos a canção baseada nela, para percebermos que o simbolismo animal do poema é redimensionado para uma realidade política outra, exatamente como deve ter sonhado seu extraordinário autor.

Provérbios do Inferno
Blake/Vizioli

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No tempo da semeadura, aprende; na colheita, ensina; no inverno, desfruta.
Conduz teu carro e teu arado por sobre os ossos dos mortos.
A estrada do excesso leva ao palácio da sabedoria.
A Prudência é uma solteirona rica e feia, cortejada pela Impotência.
Quem deseja, mas não age, gera a pestilência.
O verme partido perdoa ao arado.
Mergulha no rio quem gosta de água.
O tolo não vê a mesma árvore que o sábio.
Aquele, cujo rosto não se ilumina, jamais há de ser uma estrela.
A Eternidade anda apaixonada pelas produções do tempo.
A abelha atarefada não tem tempo para tristezas.
Os alimentos sadios não são apanhados com armadilhas ou redes.
Torna do número, do peso e da medida em ano de escassez.
Um cadáver não vinga as injúrias.
O ato mais sublime é colocar outro diante de ti.
Se o louco persistisse em sua loucura, acabaria se tornando sábio.
A loucura é o manto da velhacaria.
O manto do orgulho é a vergonha.
Os tigres da ira são mais sábios que os cavalos da educação.
As Prisões se constroem com as pedras da Lei, os Bordéis, com os tijolos da Religião.
O orgulho do pavão é a glória de Deus.
A luxúria do bode é a bondade de Deus.
A fúria do leão é a sabedoria de Deus.
A nudez da mulher é a obra de Deus.
O rugir dos leões, o uivar dos lobos, o furor do mar tempestuoso e a espada destruidora são fragmentos de eternidade grandes demais para os olhos humanos.
A raposa condena a armadilha, não a si própria.
Os júbilos fecundam. As tristezas geram.
Que o homem use a pele do leão; a mulher a lã da ovelha.
O pássaro, um ninho; a aranha, uma teia; o homem, a amizade.
O que hoje se prova, outrora era apenas imaginado.
A ratazana, o camundongo, a raposa, o coelho olham as raízes; o leão, o tigre, o cavalo, o elefante olham os frutos.
A cisterna contém; a fonte derrama.
Um só pensamento preenche a imensidão.
Dize sempre o que pensa, e o homem torpe te evitará.
Tudo o que se pode acreditar já é uma imagem da verdade.
A águia nunca perdeu tanto o seu tempo como quando resolveu aprender com a gralha.
Da água estagnada espera veneno.
A raposa provê para si, mas Deus provê para o leão

Com a palavra a Wikipédia:
As Mercenárias é um grupo de punk rock brasileiro que surgiu no início dos anos 80, com as integrantes Sandra Coutinho (baixo), Rosália (vocal) e Ana Machado (guitarra) e a adição de Edgard Scandurra, sendo que este sairia tempos depois dando lugar a baterista Lou. O grupo tem influências de bandas inglesas como Siouxsie and the Banshees, Joy Division, The Slits e Sex Pistols. Depois de um hiato musical (resultado de sua dispensa da gravadora EMI sem aviso prévio), o grupo está na ativa, com a integrante da formação original Sandra Coutinho mais as novas integrantes Silvia Tape (guitarra e back vocal) e Michelle Abu (bateria e back vocal).

Em 1982 as estudantes Sandra Coutinho, Rosália e Ana Machado criaram o grupo, entrando na onda do punk que estava gerando bandas reconhecidas no estado, como Inocentes e Ratos de Porão. Edgard Scandurra foi o primeiro baterista do grupo, mas por conta das diversas bandas que tocava (como o Smack e o futuro Ultraje a Rigor e Ira!), ele saiu e no seu lugar entrou a baterista Lou. Em 1986 foi lançado, após muita insistência, o primeiro LP do grupo, Cadê as Armas?.

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O disco foi bem recebido na época e a fama do grupo começava a crescer, tendo algumas apresentações gravadas para programas de TV (numa dessas apresentações, no programa Fábrica do Som da TV Cultura, está Scandurra, tocando com o grupo as músicas Polícia e Me Perco Nesse Tempo). O debute foi lançado pela loja Baratos Afins, velha conhecida da cena punk paulista e que já tinha outros materiais lançados na época. Faixas como Me Perco Nesse Tempo e Policia são os destaques do álbum, além da faixa Pânico, que deu origem ao único videoclipe da banda.

A partir do primeiro álbum, as Mercenárias começam a chamar a atenção de grandes gravadoras, que estavam interessados na música e na presença de palco delas. Por isso, em 1988, foi gravado o segundo álbum do grupo, Trashland, lançado pela EMI. O disco foi um sucesso de público e de crítica, sendo eleito inclusive como o “álbum do ano” pela Revista Bizz. No entanto, a gravadora não fez a divulgação necessária e, para piorar, dispensou o grupo por meio de um telegrama, não dando muitas explicações para tal ato. Logo depois, a banda estava acabada. Rosália, Ana e Lou abandonaram a carreira musical e Sandra resolve morar em Berlim, trabalhando na cena alternativa local.

Em 2005, Sandra Coutinho volta ao Brasil depois de anos morando na Alemanha e decide remontar o grupo junto com a vocalista Rosália, incluindo duas novas integrantes: Geórgia Branco e Pitchu Ferraz. No mesmo ano, é lançado no exterior o CD O Começo do Fim do Mundo (Beginning of the End of the World: Brasilian Post-Punk 1982-85), coletânea com músicas dos dois discos da banda[2]. Pouco tempo depois Rosália sai do grupo, com Sandra assumindo os vocais. Em 2012, em comemoração as 30 anos do grupo, é feito um show no Centro Cultural da Juventude – CCJ com a participação dos músicos Edgard Scandurra, Naná Rizzini, Karina Buhr, Maria Alcina, Clemente Nascimento (Inocentes) e Michelle Abur[3].

Segundo Sandra, há planos para um lançamento para um novo disco com a nova formação. Em 2015, é lançado, internacionalmente, em vinil, a primeira demo tape da banda, pela Nada Nada discos e Dama da Noite.

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Discografia

Álbuns
1986 – Cadê As Armas?
1987 – Trashland

Coletâneas
O Começo do Fim do Mundo – Beginning of the End of the World: Brasilian Post-Punk 1982-85, 2005
Mercenárias – DEMO 1983 – (2015)

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