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Arkie do BRock #2 – Paêbirú: os pilares quase desconhecidos da psicodelia nordestina

EDUARDO BRANDÃO

Paêbirú é o nome da mística trilha que ligava Cusco, o epicentro do império Inca, ao oceano Atlântico. Inúmeras ramificações faziam parte dessa complexa rede de comunicações. Muito antes dos primeiros europeus desembarcarem em solos americanos, os nativos das ‘terras além mar’ usavam o trajeto para escambo de mercadorias e para a consagração espiritual no Korikancha – Templo do Sol.

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A rota que se estendia por mais de 3 mil quilômetros por mata fechada tinha três possíveis acessos conhecidos: São Vicente, Cananéia e São Francisco do Sul, em Santa Catarina – três ilhas que abrigavam os mais antigos núcleos habitáveis por europeus em terras tupiniquins. Linguistas ainda são céticos para cravar o significado da expressão tupi: alguns a traduzem como “caminho de gramado amassado”; outros, “caminho que leva ao céu” ou “à montanha do Sol”.

Para os fãs de música lisérgicas, a união destas duas palavras (“pe” e “abiru”) significa 55 minutos e 37 segundos de uma fantástica incursão psicodélica da discografia brasileira. Disco que ficou perdido nos caminhos do tempo. A alquimia musical a resumir o que há de mais orgânico no agreste nordestino está reunida no LP duplo Paêbirú. Uma viagem visceral e alucinógena registrada entre outubro e dezembro de 1975, nos lendários estúdios da recifense Rozemblit – gravadora pioneira fora do eixo Rio-São Paulo e que merece um capítulo à parte na história discográfica nacional.

O álbum creditado a Lula Côrtes (1949-2011) e Zé Ramalho é um dos pilares do udigrudi (corruptela de underground); movimento contracultural que sacudiu Recife na década de 1970. A cena não se limitava à atmosfera musical; teatro, cinema, artes plásticas, quadrinhos e demais manifestações artísticas eram bem-vindos nesse balaio multicultural.

Dividido em quatro lados, cada batizado por um elemento da natureza, o álbum duplo tem elementos psicodélicos ao patamar (ou acima) das principais bandas californianas do gênero sessentista. Mas não se limitava apenas às distorções, solos enigmáticos e efeitos eletrônicos típicos dessa faceta roqueira. Há conotações de (acid) jazz, ritmos regionais, progressivo, rituais tribais e colagens que demonstram fortes influências que vão da segunda fase dos Beatles a Luiz Gonzaga.

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Quando terminaram as gravações do álbum, o Brasil atravessava a fase mais crítica da ditadura militar (1964-1985). O psicodelismo e o progressivo perdiam forças nos mercados europeu e norte-americanos. Porém, abaixo do Equador, essas vertentes ganhavam cada vez mais adeptos e novas inspirações, talvez impulsionado pela repressão – como a última formação dos Mutantes, Som Nosso de Cada Dia, Bixo da Seda, Terreno Baldio, Moto Perpétuo… E os fãs de rock´n roll no Velho Mundo começavam a assistir o ato final do Gram Rock e a escalada do Punk – talvez por ironia aos inúmeros acordes e temas quilométricos do prog.
Mas não foi isso que fez o material permanecer semi-inédito até a metade dos anos 2000.

Hoje reservado à galeria de grandes álbuns do rock (mundial), Paêbirú viveu décadas de ostracismo e, por pouco, não caiu num limbo comum à maioria da primeira dentição do BRock. Desta vez, não se tratou apenas da amnésia midiática ou falta de interesse do restrito público. Uma enchente quase destruiu por completo o registro dessa obra-prima (calma, eu chego lá). E as poucas cópias que cruzaram o Atlântico rumo ao Velho Mundo deram vida eterna, anos depois, à anárquica e emblemática excursão pelos mistérios de Sumé – entidade da mitologia dos povos tupis.

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Zé Ramalho e Lula Cortês

E, sem dúvida, o disco é o mais caro da fonografia brasileira. As raras cópias são vendidas a peso de ouro no exterior (um exemplar original na mão do colecionador certo alcança facilmente 4 mil dólares). Como qualquer raridade, o preço é determinado por quem a detém. No Mercado Livre, um vendedor pede R$ 11 mil pelo disco original – caso seja uma cópia autêntica, como parece ser, creio se tratar de uma pechincha. Vale a pena ler a sessão de perguntas e respostas ao vendedor.

Zé Ramalho não comenta sobre o trabalho, parece dar ao emblemático balaio sonoro o mesmo destino que o disco quase teve dias após ser prensado. Nas raras entrevistas que comentou sobre a viagem musical, se limitou a dizer que Paêbirú tem elementos da Tropicália. O resumo, entretanto, é aquém à obra lançada após a Geleia Geral. Lula Cortês faleceu em 2011, após longa batalha contra o câncer. Ele deixou como legado três álbuns fantásticos que encabeçam a lista dos melhores trabalhos psicodélicos, como o clássico Satwa, lançado dois anos antes.

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A dupla, porém, captou em singelos dois canais uma profunda atmosfera conceitual vocal e instrumental. A sonoridade tem construções antiestruturais, dando maior vazão a células anônimas de pura inspiração metafísica. Porém, com estética totalmente livre, aos moldes dodecafônicos e atonais. Poesia em forma de som Ilógico – porém, fantástico –; e uma miscelânea do que existe de universal nas hipnóticas melodias dessa época. Qualidade musical em pé de igualdade aos mais lisérgicos registros de 13th Floor Elevators, Grateful Dead, Jefferson Airplane, Cream, Big Brother and the Holding Company e Soft Machine.

Nas 11 faixas, a temática gira em torno de uma das mais extraordinárias descobertas arqueológica em solo brasileiro: a Pedra do Ingá. O monumento possui inscrições rupestres entalhadas na rocha. As teorias menos ortodoxas citam que o material tem mais de 6 mil anos. Outras atribuem origem fenícia ou até mesmo extraterrestre as enigmáticas escritas gravadas no bloco de pedra. O monólito foi a mola propulsora na consolidação no som captado em Paêbiru, análogo a que o Stonehenge (e o ácido lisérgico) desencadeou no processo criativo do Pink Floyd.

A história do álbum é similar ao achado arqueológico no sertão nordestino. Tê-lo em mãos remete às lendas do El Dourado, dada as situações que envolveram a sua gravação. Os fãs (e, sim, existem muitos) o tratam como o Santo Graal da fonografia brasileira – ao lado do renegado e bossa-novista LP Louco por Você, o primeiro registro de Roberto Carlos, e Tim Maia Racional.

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Calcula-se que apenas três centenas de cópias originais existem espalhadas pelo mundo. O disco teve somente uma prensagem: 1.300 exemplares. E a penúltima das cinco enchentes que atingiram a Fábrica de Discos Rozenblit devastou quase que totalmente a tiragem – o selo ficava às margens do Rio Capiberibe e a última cheia, em 1977, foi determinante para que a gravadora fechasse as portas. E, pior, a enxurrada levou a fita máster com as gravações, o que impossibilitou novas levas do disco à época. Os poucos que tiveram acesso direto ao material, muitos dos quais no exterior, ajudaram a colocá-lo no atual patamar de veneração – sim, o álbum merece.

Novas fornadas do Paêbirú só chegariam aos ouvidos dos fãs com três décadas de atraso. E graças à tecnologia. Foi a partir de uma cópia original que o selo inglês Mr. Bongo reeditou (o quase inédito) trabalho, em 2008. Tarefa primorosa a reproduzir o (lindo) material gráfico e colocar a alquimia musical num vinil de 180 gramas.

Há quem diga que a captação do áudio ficou bem próxima à versão lançada na década de 1970. Outros, porém, citam uma espécie de “som metalizado” a atrapalhar a audição. Na Inglaterra, a versão moderna custa 20 libras esterlinas, algo em torno de R$ 85. Selos japoneses, alemães e norte-americanos também lançaram o material em seus mercados – sem dúvida, a versão do Mr. Bongo é a que mais se aproxima da clássica.

Somente em 2012, a única fábrica de vinil da América do Sul, a Polysom, reeditou a obra por aqui. Em edição especial e limitadíssima. Achar essa preciosidade da arqueologia sonora brasileira é tarefa hercúlea. As raras cópias das novas tiragens ultrapassam facilmente a R$ 250.

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