Entrevista | Vitor Cabral & Thalma de Freitas – “Johnny Alf foi prejudicado por ser um homem negro e homossexual”

Antes do show da Black Mantra com BNegão, que vai revisitar a fase Racional, de Tim Maia, Vitor Cabral Septeto & Thalma de Freitas apresentam Genialf no palco do Santos Jazz Festival, que está montado no Arcos do Valongo. A apresentação nesta sexta-feira (26), que tem entrada gratuita, começa às 22h. Genialf é um tributo especial a Johnny Alf, músico apartado do devido reconhecimento à época por puro preconceito, e que foi o grande responsável pela mistura do jazz com o samba, criando os novos arranjos e harmonias que deram o tom da bossa nova, posteriormente popularizada por Tom Jobim, Vinícius de Moraes, João Gilberto, entre outros. “A obra de Johnny Alf carrega essa intersecção única e apaixonante da música instrumental com a música canção. Tem densidade, melodia, harmonia, o lirismo poético do cancioneiro que faz a música brasileira ser reconhecida grandiosa como ela é. Ele carrega esse lugar da dimensão da música canção e da instrumental. E trazemos isso ao palco nesse projeto”, conta Vitor Cabral. O Blog n’ Roll conversou com Vitor Cabral e Thalma de Freitas sobre o show Genialf, a importância de Johnny Alf, entre outros assuntos. Confira abaixo. Como funciona esse show Genialf? Vitor – É um show híbrido, que mistura canções e a parte instrumental, justamente porque eu, como líder do grupo, acredito que a obra do Johnny Alf é justamente esse santo graal. É um tipo de música que carrega a densidade, que é harmônica, melódica, rítmica, muito cativante para a música instrumental. Como instrumentista de música instrumental, tem harmonias que são desafiadoras, mas a obra também conserva em si o espírito da canção.  Quando se conhece a árvore genealógica da música brasileira, fica mais fácil de entender. No final dos anos 1940, Tom Jobim, Carlos Lira, todos os grandes nomes do cancioneiro popular, acompanhavam e estudavam nas aulas de Johnny Alf.  A ideia desse projeto é justamente conseguir explorar esses dois lados, um lado que performa a música improvisada e as influências jazzísticas que ele declaradamente sempre falou, mas, obviamente, da canção popular brasileira, afro-brasileira também, os toques do candomblé. E tudo isso com a participação da Thalma, que é uma amiga super querida, a gente vem trabalhando intensamente juntos há dois anos. Na tua opinião, quão importante foi o Johnny Alf para a música brasileira?  Thalma – Ele influenciou toda a galera da bossa nova a criar, ter uma linguagem, até dá para ouvir a referência do que ele criou. Se você olhar as datas de quando ele lançava aquelas músicas, você vai entender que muitos dos acertos que são conhecidos foram influenciados por ele, pelo piano dele. Ele é contemporâneo de todo mundo, mas foi prejudicado por ser um homem negro e homossexual naquela época. Prejudicou bastante a carreira dele, não era panfletário, mas não negava a situação. Tanto que tinha capa do disco que ele, que acho super vanguarda, quando elegantemente declarou o amor dele. Acho que isso tudo fez dele um cara de vanguarda. Ele era muito moderno, muito elegante, muito sofisticado, muito criativo, um grande pianista, um grandíssimo compositor.  Vitor – Ele é uma figura muito, muito subestimada. Johnny Alf é o protagonista fundamental para o surgimento da bossa nova, por exemplo. Ele é uma figura que por mais que tenha se concentrado e dedicado à criação de harmonias mais complexas, da orquestração, dessa coisa que vem do jazz, trouxe muita coisa da música clássica francesa.  Diferente do Tom Jobim ou João Gilberto, por ser um negro que tem isso no DNA dele, foi um cara que pensou em conservar, a qualquer custo, as raízes afro-brasileiras. Vitor Cabral Não só colocando toques de candomblé na música, mas a forma de articulação da melodia, é a consciência rítmica que o afro-descendente muitas vezes tem que abandonar para ser aceito em um determinado meio, uma determinada sociedade. Então, ele preserva de uma maneira muito genial.  Johnny Alf é de uma sofisticação histórica, tanto pelo contexto histórico, mas pelo contexto social também, você percebe que ele escolhe manter esses signos afro-diaspóricos. Numa época onde o candomblé e muita música de terreiro eram demonizados, ele faz uma música que se chama Oxum. É de uma coragem muito impressionante.  Ele conseguiu traduzir tudo isso em canção sem necessariamente ser um militante, era uma figura muito silenciosa, muito tímida, que temia muito sofrer um certo cancelamento.  Por que Johnny Alf é tão subestimado e muitas vezes esquecido?  Vitor – É o racismo estrutural mesmo, principalmente no movimento da bossa nova, que era super elitista. Nem todo mundo tem muita coragem de falar sobre isso, mas era um movimento majoritariamente branco, classe média alta, hétero.  Acho que o motivo central é esse: o cara era preto e gay numa época onde isso não era tolerado.  Outra coisa que explica isso é o Brasil não ser um país de memória. Está começando a aprender isso agora. Acho que o Brasil ainda está engatinhando nisso. Temos uma dificuldade muito grande ainda de consagrar os nossos mestres, e esses mestres ocuparem esse lugar de panteão eterno, como acontece nos Estados Unidos. Ninguém tem problema com o Duke Ellington, por exemplo.  O Tom Jobim conseguiu ser muito bem sucedido aqui, porque foi muito bem sucedido nos Estados Unidos. O Johnny Alf não teve essa oportunidade. Por que? Porque era preto e gay.  Thalma – Justamente por ser um homem negro naquela época faz com que você, às vezes, não consiga montar um negócio em volta do trabalho, mas o trabalho dele tem força suficiente para sobreviver ao tempo, sobreviver à falta de estrutura, né?  Sim. De marketing, basicamente, porque você sabe que, você que é jornalista, sabe que muitos artistas, eles ficam conhecidos por causa do marketing em volta deles. A editora que tem os direitos da obra dele não faz um trabalho de manter o legado. Ele não deixou uma família aceitável para fazer isso. Ele tinha um parceiro, mas tiraram do parceiro dele a possibilidade de ser o herdeiro e manter o legado dele vivo

Entrevista | Dori Caymmi – “Quero mostrar o Brasil um pouco esquecido”

Prestes a completar 81 anos, Dori Caymmi confirmou show no Sesc Santos. A apresentação acontece no Teatro, no próximo dia 2, a partir das 20h. Os ingressos já estão à venda. Mesmo com um álbum recém-lançado, Prosa e Papo, o músico focará sua apresentação no livro Dori Caymmi songbook: 80 anos de um cantador, lançado no ano passado. O songbook reúne um perfil biográfico escrito pelo jornalista Claudio Leal e um álbum com 12 violonistas e quatro cantores convidados interpretando 12 canções que compõem o disco digital. No repertório em Santos, canções como Delicadeza, Desenredo, Estrela da Terra, Evangelho, O Cantador, Quebra-mar e Saveiros devem ser incluídas por Dori. Filho dos também músicos Dorival Caymmi e Stella Maris, Dori acumula uma longa lista de criações ao lado de nomes estelares da música popular brasileira, um gênero que ajudou a consolidar. Sua marca nas obras de Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Edu Lobo, Elis Regina, Chico Buarque e Milton Nascimento são apenas alguns exemplos da sua grande contribuição à MPB.  Em entrevista ao Blog n’ Roll, Dori Caymmi falou um pouco sobre a apresentação, atual cenário da música e a família cheia de talentosos músicos. Como funciona esse show que você vai apresentar no Sesc?  É um show todo em cima do songbook, um projeto que teve a participação do Danilo Miranda (finado diretor regional do Sesc São Paulo). Não pode nem falar a palavra songbook, né? Então, é um livro sobre o meu trabalho que tive a ajuda do Mário Gil na parte de gráfica e produção. E aí, cantam o Renato Braz, a Mônica Salmaso, meu irmão Danilo, entre outras várias pessoas, violonistas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Em Santos, o show será com os meninos do Rio e o Renato Braz, que canta várias músicas nesse disco. As outras pessoas estão muito ocupadas.  Quais lembranças mais marcantes você tem de Santos? Toquei muito em Santos, tinha um bar incrível, o Bar da Praia, que era do Eduardo (Caldeira). Todas as vezes foram ótimas lá, o público de Santos é maravilhoso. Eu fiquei encantado com o Bar da Praia. Ia com a minha mulher para Santos. Íamos no Bar da Praia e voltávamos no mesmo dia. E tinha muito medo de bar, não gostava porque no bar todo mundo bebe, mas lá era um negócio muito bonito. Fiquei muito feliz em Santos. O que mantém esse seu apetite pelos shows? Não gosto de excursionar, não faço muitos shows. Já havia feito o Sesc São Paulo, agora é Santos, Ribeirão Preto. Mas normalmente não sou muito do show, não. Sou mais de fazer o disco.  Nesse mês, estou impossível de aturar. Porque estou trabalhando muito. O Tom Jobim dizia “estou trabalhando mais do que eu mereço”. É bem isso. Mas eu gosto, gosto muito.  Vou fazer 81 anos este ano. A minha geração toda está nos 80, né? Mesmo os que vieram logo depois, como Ivan Lins, Djavan, o pessoal todo está perto dos 80 também. Está todo mundo chegando lá. E aí tem os mais velhos, Gil, Milton, Caetano e Paulinho da Viola. Esses estão fazendo 82.  Uma vez liguei para o Caetano e dei os parabéns, ele tinha feito 70 anos, há muito tempo atrás. E ele disse assim: “estou lhe esperando”.  Mas, respondendo sobre o desejo pelos shows, não gosto da excursão. Sou mais um músico que quer mostrar o Brasil um pouco esquecido. E o meu trabalho é muito brasileiro, tem muita profundidade. Isso não interessa também a muita gente.  Não faço um show de entretenimento, faço para tocar nas pessoas. Quero chegar mais duro, aí dou umas pinceladas. Mas não é show, é uma apresentação musical muito baseada no Brasil. Apesar de não estar previsto para o show em Santos, queria que você falasse um pouco sobre o seu álbum mais recente, Prosa & Papo… É um disco muito apoiado no que o papai falava para a gente na infância. Ele era muito brincalhão. Por exemplo, quando a gente estava enchendo o saco, ele falava: “entre por onde saiu e faça de conta que nunca me viu”. O Paulo César escreveu uma letra maravilhosa sobre isso. E ele botou o nome de Chato. “Vá ver se estou na esquina/ Se eu tiver, não me chame/ Não toque alto a buzina/ Que é para não dar vexame”  Outra frase do meu pai também virou música, Prosa e Papo. Ele dizia “carrapicho é mato, carrapato é bicho”. Ele brincava com a gente o tempo todo dessa forma. E aí nasceu esse disco chamado Prosa & Papo, que tem a participação da Joyce Moreno, Mônica Salmaso, Renato Braz e o Zé Renato.  São oito músicas inéditas e outras três que já cantei no disco com a Mônica Salmaso (Canto Sedutor).  Outra que gosto bastante é uma homenagem à Mercedes Sosa (Canto Para Mercedes Sosa), que pra mim é a grande cantora latino-americana.  O que é que tem na água da família Caymmi? Porque a gente vê tantos talentos gerações após gerações…  Meu pai nunca foi muito fã de ter filhos e netos artistas. Era muito sacrificante a vida do músico. Mas quando minha irmã virou cantora, eu virei músico. São 20 discos que já fiz. Danilo também tem feito shows aí.  Nós estamos até programando para ver se vamos fazer algo com uma orquestra para celebrar os 110 anos que o papai faria agora. Não sei se é a água da família não, acho que tem mais a ver com a influência dentro de casa, sempre foi uma casa muito musical. Minha mãe era cantora de rádio, meu pai era compositor e cantor, então a gente tinha essa música ao vivo nos fins de semana, o tempo inteiro.  Tinha muita música brasileira, mas também discos incríveis estrangeiros, como Frank Sinatra, Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald. A gente ouvia tudo com eles. Quando você vai para a casa de um profissional de odontologia, o filho naturalmente será dentista. Na minha casa foi só